Carlos Demony Botelho
Professor universitário e associate member do Maturity Institute
Compreender os sinais de uma crise latente e explorar caminhos para sair da encruzilhada onde se encontra. O ponto de partida para a reflexão a desenvolver neste artigo decorre da constatação daquilo que se tem vindo a passar com a área que convencionalmente designamos por gestão de recursos humanos (GRH), para que perto de 100 anos depois da formalização dos primeiros serviços de recursos humanos nas empresas, ao tempo administração de pessoal, e, mais de um quarto de século após a sua afirmação como disciplina académica nalgumas das principais universidades, ainda se assista com uma inusitada frequência, pelo menos se considerarmos o que se passa com outras áreas da gestão, ao questionar do valor e no limite da própria existência da função RH nas organizações.
Este tipo de evolução leva-nos a pensar sobre os caminhos que têm vindo a ser percorridos para que se verifique este caso bastante singelo no domínio das ciências da gestão, em que existe uma distinção substantiva entre o objeto e os profissionais que o gerem. Por contraponto, na maioria das outras áreas da gestão existe uma forte simbiose, por exemplo, área financeira e analistas financeiros, área de marketing e gestores de produto, ou área do aprovisionamento e compradores. Esta permeabilidade muito característica da gestão de recursos humanos faz emergir um duplo desafio, o qual requer a afirmação simultânea da GRH enquanto domínio relevante da gestão e dos profissionais de RH como dotados de um conjunto de saberes e capacidades que contribuem para gerar valor nas organizações. Em parte, esta situação decorre do facto da GRH ser uma área onde prevalece o senso comum, mas de uma natureza muito particular, onde ressalta a singularidade de gestores e empregados exibirem uma propensão para considerarem que a sua experiência pessoal é condição necessária e suficiente para interpretarem e executarem as práticas de gestão. Esta tendência é reforçada pela situação do campo da gestão ser marcado por um conjunto de modelos e buzzwords que se aproximam da noção de modas, onde não está presente, pelo menos de forma explícita, a preocupação de decidir com base nas evidências. Muitas das vezes damos conta que as decisões relativas aos métodos e processos de RH são verbalizadas com expressões do género: parece-me bem, é muito interessante, quem mais está a fazer isso, ou ainda, ótimo, porque estamos mesmo a precisar de mudar.
Por estas razões, consideramos que o debate tem de começar desde logo por responder à pergunta, a quem pertence a responsabilidade de gerir os recursos humanos? É comum afirmar-se que se trata de uma responsabilidade partilhada. No entanto, não deixa de ser curioso que a resposta que obtemos recorrentemente, quando abordamos o tema junto de gestores, é sobre esse assunto o melhor mesmo é contactar o nosso departamento de RH, ou falar com o(a) senhor(a) X. Para ilustrar esta ideia partilho o comentário de um gestor executivo “(…) a imagem mais forte que eu tenho é que de facto nós temos uma gestão de recursos humanos em que há um afastamento por parte das lideranças. Portanto, os temas associados aos recursos humanos são basicamente tratados pela área de RH e não pelas próprias lideranças”. Este comentário encerra uma ideia paradoxal, já que sendo uma resposta cujo teor deixa normalmente os RHs tranquilos, e concordando que ela expressa confiança e aceitação, gostaria de sublinhar que simultaneamente fragiliza a função e exclui a área dos recursos humanos do domínio das preocupações dos decisores de topo nas organizações.
Considerando aquilo que foi referido parece inevitável assumir estarmos perante um cenário de crise, no sentido de momento decisivo, com que se confronta a área da GRH, em sentido geral, e a função RH em sentido específico. Neste contexto podemos afirmar que a discussão sobre a viabilidade da função RH não pode ser realizada em separado da análise da própria sustentabilidade das organizações. E que qualquer resposta tem de ser encontrada no quadro do sistema total de gestão. Esta circunstância eleva as expectativas bem como as possibilidades de afirmação da gestão de recursos humanos.
Um outro elemento que pode guiar a nossa reflexão está associado com a diversidade de designações que têm vindo a ser atribuídas a esta área funcional. Desde a tradicional GRH, à gestão de pessoas, gestão do talento, gestão do capital humano, pessoas e cultura, etc. E ao fazê-lo colocar a hipótese de ler nestes sinais a expressão de uma área que procura afirmar-se. Poderemos sempre argumentar que a escolha da designação não deverá fazer assim tanta diferença, mas claro que faz! E, em nossa opinião, o nível mais elevado de profissionalismo e maturidade exige igualmente o nível mais elevado de precisão linguística (Kearns, 2013).
Para além da sua designação sugerimos considerar igualmente nesta análise o leque de expectativas que têm sido associadas aos profissionais de recursos humanos, as quais podem ser descodificadas em torno de um conjunto nuclear de papéis que definem requisitos, possuem um racional e que têm consequências para as organizações e a própria função RH.
Numa proposta integradora, Banfield e Kay (2012) sugeriram cinco perspetivas dominantes, que designaram por Papel de Apoio Social, Papel de Bombeiro, Papel de Manutenção da Ordem, Papel de Contribuição Estratégica e Papel de Parceiro do Negócio. Estas diferenças levam a posicionar a área de RH em espaços de intervenção muito diferenciados: desde cuidar do bem-estar físico, emocional e psicológico dos empregados; a encontrar soluções para problemas operacionais; em assegurar a conformidade dos processos e decisões relacionadas com os recursos humanos; em contribuir para construir as capacidades da organização; ou em apoiar de modo próximo os responsáveis do negócio.
E um derradeiro aspecto da análise que pretendemos suscitar tem a ver com o que podemos designar por ausência de uma verdadeira noção de profissionalismo associada com o domínio da GRH. Apesar de encontrarmos no mundo alguns esforços nesse sentido, ver os percursos de certificação para profissionais de recursos humanos promovidos por duas das maiores associações, a SHRM nos Estados Unidos da América e o CIPD no Reino Unido, ainda domina a ideia de que para se estar à frente da área de RH é condição necessária e suficiente perceber do negócio e ter algum bom senso. E, já agora, diz-se, ajuda gostar de pessoas. Mas não será que esta opção é um pouco redutora da importância estratégica que de forma consensual pretendemos atribuir aos recursos humanos e ao capital humano que lhe está associado? A verdade é que a porta de entrada para a função RH é muito larga enquanto que a da maioria das restantes áreas de gestão é bem mais estreita!?
Perante este conjunto vasto de problemáticas e contradições acreditamos existirem evidências sólidas para afirmar que a GRH e a função RH se encontram numa encruzilhada.
Problema ou oportunidade? Tudo dependerá da nossa capacidade de resposta.
Uma primeira pista para sair desta encruzilhada passa por responder à dúvida de saber se as muitas indefinições e aparentes contradições correspondem a uma virtuosidade ou vulnerabilidade do domínio da gestão de recursos humanos. Aos profissionais de RH compete capitalizar a seu favor o facto dos temas com que lidam serem próximos de todos os intervenientes. Não questionando a existência desse tão proclamado senso comum, mas ao invés, sendo capazes de elevar o teor das discussões que ocorrem nas organizações, procurando demonstrar que subjacente ao conjunto de modelos e práticas em uso existe uma intenção e uma rede de evidências, e posicionando a gestão de RH a um nível que podemos designar por senso comum complexo. Perante este cenário, sugerimos que os profissionais de RH devem demonstrar como comentado por Botelho (2003), “(…) uma postura que implica assumir um papel que transcenda a mera aplicação de ferramentas, devendo ser capazes de evidenciar e conciliar a curiosidade de um cientista, o pragmatismo de um profissional e a competência de um especialista”.
Em paralelo, é também relevante considerarmos a natureza das conversas que ocorrem nas organizações sobre temas relacionados com a GRH. A este propósito parece interessante citar um estudo internacional que demonstrou que as organizações onde mais tempo das reuniões executivas era dedicado aos temas de recursos humanos apresentavam igualmente indicadores de eficácia mais elevados. Devo expressar com alguma surpresa, a dificuldade que tenho encontrado junto dos gestores executivos em obter descrições claras sobre o conteúdo das suas conversas relacionadas com temas de recursos humanos. Sendo caso para perguntar, onde está a agenda da GRH?
Outra possibilidade em que se deve focar a atenção da função RH consiste em dar uma resposta mais clara sobre a relação existente entre a GRH e o desempenho organizacional, o que passa pela existência de uma proposta de teoria sobre o funcionamento das empresas, a qual apresente uma relação explícita entre a esfera da gestão das pessoas e a eficácia das organizações. Neste sentido, um dos gurus da gestão, Gary Hamel, afirmou: “Um outro caminho possível para sair desta encruzilhada passa por ter uma função RH mais próxima dos clientes”. Nas conclusões de um estudo do Institute of Employment Studies (1998), é sublinhada a importância de se saber explicar a forma como os processos de GRH são vivenciados pelos empregados. Esta formulação também nos é sugerida por Ulrich (2013), quando nos fala de uma abordagem de gestão “from the outside in”, ou ainda por Guest (1999) ao defender a ideia de que o veredicto final sobre a GRH pertence aos trabalhadores. Havendo tudo a ganhar numa abordagem focada na noção que a GRH deve atender nas suas abordagens a múltiplos stakeholders. Um enorme desafio para não cair na tentação de pura e simplesmente procurar agradar a gregos e troianos.
No entanto, o melhor dos caminhos passará muito seguramente por desenvolvermos uma interpretação baseada na noção de sistema total. Entendendo por sistema de RH o conjunto interrelacionado de atividades e práticas que de forma conjunta permitem que os objetivos da GRH sejam alcançados. É esta qualidade única de cada sistema organizacional de recursos humanos que o torna, como defendem Becker e Huselid (1998), no meio mais importante para implementar a estratégia, constituindo desse modo o recurso RH de maior valor. A natureza deste sistema de RH é da ordem dos sistemas complexos, nos quais a consistência entre os seus diferentes componentes: a filosofia de gestão, a orientação estratégica, o conjunto de politicas e o leque de práticas, assume um efeito de interdependência. Uma ideia fundamental que releva desta abordagem chama a nossa atenção para a importância em considerar toda a cadeia de ações e decisões, em que não será suficiente apostar unicamente nalguns dos seus componentes e aguardar que esses compensem outros a que não se conceda tanta atenção. O sistema de RH encerra em si mesmo múltiplas contradições que são fortemente penalizadoras do seu impacto. Alguns exemplos: seleccionar só os melhores e depois pretender remunerar na média do mercado; ou ter como valor a colaboração interna e depois ter um sistema de desempenho que considera exclusivamente indicadores individuais.
Em última análise, não é suficiente que o sistema de RH esteja formalmente bem desenhado, referimo-nos às políticas enquanto o plano onde se definem as intenções. O sistema RH possui a particularidade de necessitar de mobilizar as vontades dos actores principais, managers e empregados, numa visão partilhada, tal qual expressa o provérbio que afirma podermos levar um cavalo até à água mas não o podermos obrigar a beber. E, mais ainda, naquilo que representa a forma como as práticas de RH são percebidas e as reacções que geram nos empregados. No limite há que compreender a lógica subjacente a três grelhas de leitura da realidade e dinâmicas associadas com a GRH. Poderemos dizer que a qualidade geral do sistema de RH depende da forma como ele consegue desenvolver um nível de coerência elevado neste triângulo – função RH, gestores e empregados.
Numa perspetiva complementar e que reforça o nosso comentário anterior surge o confronto entre duas naturezas de indicadores do funcionamento do sistema RH. Estamos a mencionar aqui a diferença entre “hard figures” e “soft figures”. Imagine por um momento que a sua organização acaba de receber um relatório onde surge em 3.º lugar no indicador o número médio de horas de formação, a sua reação é muito provavelmente de satisfação por ter a noção de que está numa situação de vantagem competitiva. Mas e se este relatório incluir igualmente a perceção do grau em que os empregados se sentem satisfeitos com as oportunidades de formação proporcionadas pela sua organização e, neste aspecto, a sua empresa tiver uma avaliação que a posiciona no 43.º lugar. Como vai decidir, o que tem mais sentido, onde está a verdade, que significado dar a estas diferenças.
Este é o mundo da gestão de recursos humanos, em que a necessidade de gerir ambos os tipos de indicadores, hard e soft, andam de mãos dadas. Estas diferenças e complementariedades reforçam a noção de que a GRH deve incluir na sua análise e compreensão quer a faceta técnica quer a natureza social dos processos. Este contexto social é um mecanismo importante e diverso, envolvendo a cultura, o clima e a esfera política (Ferris et al., 1998).
Em resultado das diferentes combinações podemos falar da existência nas organizações de quatro tipos de abordagens: a) o foco nas práticas de RH, traduzindo-se numa grelha de leitura exclusivamente técnica; b) o foco no bem-estar das pessoas, o qual remete para uma crença de que trabalhadores satisfeitos são mais produtivos; c) no quadrante virtuoso, encontramos uma combinação sinérgica que se expressa num conjunto de opções em que a técnica e o relacional se procuram compatibilizar e, por último, d) no quadrante menos otimizado, em que se revela uma ausência de foco, com respostas fragmenta as e inconsistentes.
A concluir, referir que uma componente crítica da evolução futura terá a ver com a capacidade da função RH contribuir para melhorar a qualidade das decisões organizacionais em temas relacionados com a GRH, e a partir desta nova postura ser capaz de convencer os diferentes stakeholders da sua importância em contribuir para essas decisões.
Fica o convite para a função RH investir numa gestão baseada nas evidências em alternativa a uma cultura do “achismo” e do “depende”. Sendo que o motor deste movimento devem ser os líderes da função RH. Nesse percurso, os líderes da função RH devem ter o cuidado e a coragem em avaliar de modo sistemático a eficácia da função RH, o que pode passar por considerar três áreas critério (Wright e colegas, 2001), ou seja, a avaliação do serviço prestado, o contributo organizacional e o conjunto de políticas e práticas (englobando aqui numa versão mais lata os programas, iniciativas e procedimentos sugeridos pela área de RH).
Em síntese, para sair da encruzilhada a que nos referimos ao longo do artigo, importa ser capaz de responder à questão fundamental, ou seja, se e como é que a GRH e a função RH fazem diferença em termos dos resultados organizacionais.
E, para tal, será necessário articular o valor da função, especificar os caminhos pelos quais a GRH pode contribuir para a eficácia organizacional e estimular a função RH a desenvolver medidas inovadoras que demonstrem o valor acrescentado do sistema de práticas de recursos humanos.