Autor: Carlos Botelho, Professor Universitário em GRH – ISCSP da Universidade de Lisboa
Assistimos nos últimos anos a um debate crescente entre académicos, gestores e sociedade civil a respeito do equilíbrio entre as exigências do trabalho e da vida familiar. Entre as diversas vertentes em discussão emerge uma questão de fundo relacionada com o facto de serem consideradas como dois elementos de natureza contrária, complementar ou independente – em linha com aquilo que Byrne e Canato (2017) referiram ser o domínio público do trabalho e o domínio privado da família.
No contexto atual, incerto e competitivo, as empresas devem procurar proporcionar um conjunto de condições favoráveis à conciliação entre o trabalho e a vida familiar, uma vez que os empregados, em geral, dão bastante importância a este aspeto (Sabil & Marican, 2011). Deste modo, as práticas de RH devem permitir que as empresas se diferenciem no mercado através da forma como cuidam dos seus empregados, não exclusivamente enquanto recursos económicos, mas também como pessoas com objetivos de realização pessoal – entre os quais, a concretização dos seus projetos familiares ocupa um papel central. Assim sendo, este aspeto da gestão dos recursos humanos assume grande relevância visto que a capacidade de conciliar os interesses das empresas e dos empregados tornou-se um fator crítico de sucesso numa perspetiva de longo prazo (Kjeldsen & Jacobsen, 2012).
Apesar de as evidências apontarem para o facto de que a perceção de ser uma empresa amiga das famílias – “family supportive organization” – tem um efeito positivo para as duas partes, empresas e pessoas, ainda se discute de forma viva sobre os mecanismos pelos quais as empresas poderão influenciar a criação deste tipo de ambiente organizacional.
A lógica subjacente às políticas de GRH que se focam no bem-estar dos empregados reside no “business case” que argumenta resultarem numa situação “win win” (Perrigino et al., 2018). As pessoas beneficiam por via do aumento do seu bem-estar e nível de desempenho, enquanto as empresas retiram dividendos em termos de produtividade, menores custos de “turnover” e criação de uma imagem externa positiva.
“Este é um dos temas centrais na gestão moderna do capital humano, particularmente com a transição de uma empresa predominantemente masculina para um maior equilíbrio na representação de géneros. Para além da atração e retenção de talento jovem, a empresa procura adotar medidas que proporcionem novas estratégias que nos diferenciam no mercado.” Diretor de Recursos Humanos
Num estudo realizado recentemente analisámos as práticas de recursos humanos enquanto elementos facilitadores ou inibidores da conciliação entre o trabalho e a vida familiar. Por outro lado, verificámos a relação existente entre essas práticas e duas variáveis consideradas como antecedentes prováveis das empresas amigas das famílias, nomeadamente, a existência de uma cultura de gestão associada com valores organizacionais positivos e a existência de uma atitude favorável da parte dos responsáveis hierárquicos. Finalmente, o nosso estudo considerou dois tipos de consequentes organizacionais, um “hard” – a concretização dos projetos familiares – e outro “soft” – a intenção de saída e o envolvimento dos empregados. O estudo foi desenvolvido em seis empresas portuguesas de média/grande dimensão, tendo sido consideradas as respostas de mais de mil empregados a um inquérito e as entrevistas com os respetivos gestores de recursos humanos – de onde foram extraídas algumas das citações incluídas no texto.
Conciliar os interesses das empresas e dos empregados tornou-se um fator crítico de sucesso numa perspetiva de longo prazo (Kjeldsen & Jacobsen, 2012)
Trilogia de elementos fundamentais
Os resultados do nosso estudo mostram que a criação de empresas que são percebidas pelos empregados como amigas das famílias (“family supportive organization”) requer uma abordagem sistémica, a qual deverá integrar elementos da sua cultura de gestão – valores organizacionais positivos, os comportamentos daqueles que são os principais intervenientes na execução das políticas de recursos humanos – os responsáveis hierárquicos – e a perceção da qualidade de um conjunto amplo de práticas de RH por parte dos empregados.
Do ponto de vista das práticas de RH, as evidências indicam que todas as áreas analisadas, nomeadamente, a) o nível de remuneração – incluindo a remuneração base e componentes variáveis; b) a organização do trabalho – incluindo o horário, o volume de horas semanais, a necessidade de levar trabalho para casa; c) as perspetivas de progressão profissional – incluindo o assumir de mais responsabilidades e de remuneração/benefícios mais elevados; d) o ambiente geral de trabalho – incluindo a qualidade do relacionamento com os colegas e os responsáveis, o clima de respeito e confiança e os meios de trabalho; e) os benefícios sociais – incluindo seguros de saúde, subsídios para os colaboradores com filhos –, demonstram ter uma relação positiva e significativa com a perceção das empresas como amigas das famílias, o que reforça a noção de ser importante gerir as práticas
de RH enquanto um sistema integrado.
O nosso modelo, naquilo que poderemos designar como uma trilogia de elementos fundamentais – ver figura –, explica 53% da variância total da perceção das empresas como amigas das famílias. A que acresce a demonstração de que a presença, tanto de valores organizacionais positivos como de uma atitude de suporte por parte dos gestores, tem um efeito positivo e incremental na formação deste tipo de ambiente nas empresas.
O nosso modelo explica 53% da variância total da perceção das empresas como amigas das famílias
Por último, os dados mostram ainda que as empresas percebidas como sendo mais amigas das famílias dispõem de resultados mais elevados e estatisticamente significativos no indicador “hard”, que mede a concretização do projeto familiar dos seus empregados. E, no que respeita aos consequentes “soft”, verifica-se um efeito de 15% na explicação das intenções de saída e de 39% no nível de envolvimento (“employee engagement”).
“Para além da retenção, obviamente, pretendemos ter um ambiente positivo na empresa, queremos que as pessoas se sintam bem e que sejam felizes aqui, de uma forma mais geral. De uma forma mais prática, pretendemos que as pessoas tenham as melhores condições para serem produtivas, para terem baixo absentismo e para evitarmos o turnover na nossa área.” Diretor de Recursos Humanos
Reflexão final
Na sociedade em geral, e com grande atualidade em Portugal, o debate sobre a relação existente entre as condições laborais e a conciliação entre responsabilidades familiares e profissionais estabelece o contexto adequado para o aprofundamento da compreensão do tema das empresas como “amigas das famílias”. Esta análise mostra-se cada vez mais relevante se olharmos para a gestão de RH na perspetiva de múltiplos stakeholders, sendo que a família é necessariamente uma dessas partes. Ao mesmo tempo que o nosso conhecimento sobre as relações entre a GRH e o desempenho organizacional tem evoluído, o papel das pessoas tem-se tornado mais central, refletindo a noção de que o impacto da GRH no desempenho se materializa em larga medida no modo como influencia as atitudes e comportamentos dos empregados (Guest, 2017). Em paralelo, é de sublinhar o interesse crescente por modelos explicativos mais equilibrados e em que se possam alcançar benefícios para as duas partes. Por exemplo, Jackson, Schuler & Jiang (2014) referem como consequentes importantes “… capital humano e bem-estar psicológico para os empregados, e desempenho dos empregados e comportamentos de cidadania [organizacional] para os gestores, ou desempenho financeiro e reputação para os proprietários/investidores”.
Vários fatores, entre eles os benefícios sociais, têm uma relação positiva com a perceção das empresas como amigas das famílias
Em síntese, um tema a colocar na agenda da GRH e quem sabe se não poderia mesmo ser interessante criar um índice de natalidade das empresas – uma versão análoga dos índices de produtividade!?
Cinco tópicos que devemos saber sobre ser uma empresa “amiga das famílias”:
- As práticas RH são relevantes, devendo contudo ser pensadas como condição necessária mas não suficiente. Necessitamos igualmente de um contexto organizacional que seja propício – ter uma cultura de gestão baseada em valores positivos e contar com gestores verdadeiramente comprometidos com este propósito;
- O contributo das práticas RH ocorre em resultado de um sistema integrado e diversificado de categorias de práticas, mais do que depende de um único tipo de práticas;
- Existem dois tipos de benefícios principais. Um efeito direto nas famílias, por via da concretização dos projetos familiares – embora não tenhamos encontrado suporte para o critério da dimensão da família (número de filhos). Um efeito indireto para as empresas pela redução da intenção de saída e pelo incremento do nível de envolvimento com a organização e o trabalho;
- É importante que as empresas não se limitem a adotar, como iniciativas neste campo, aspetos que estão estabelecidos na lei e como tal não passam do nível da conformidade;
- Considerar a discussão deste tema integrada numa visão alargada da responsabilidade social corporativa.
Texto baseado numa comunicação apresentada em coautoria com Vanessa Martins nas XXIX Jornadas Hispano – Lusas de Gestão Científica, com o título “O papel das práticas de recursos humanos como facilitadoras ou inibidoras da conciliação trabalho – vida familiar: a perceção das organizações como amigas das famílias”.
Artigo técnico publicado na edição n.º 139 da RHmagazine, referente aos meses de março/abril de 2022.
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