Autor: Mário Ceitil, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas, Formador, Docente Universitário e Membro do Conselho Nacional dos Psicólogos
A noção adquirida de que o reconhecimento é uma ferramenta fundamental para aumentar a motivação dos colaboradores, associada à preocupação dos líderes em criarem ambientes que estimulem atitudes e mentalidades positivas, tem vindo a fazer aumentar no léxico da gestão, em particular da gestão das pessoas, a utilização de vocábulos como “excecional”, “extraordinário” e, naturalmente, o seu aparentado e já muito habitual “excelente”, enquanto qualificativos atribuídos a pessoas que, alegadamente, praticam desempenhos ou alcançam resultados considerados acima da média.
Apesar de esta tendência estar já muito generalizada, alguns autores (1) têm vindo a alertar para o facto de que tais adjetivos que, em si mesmos, são extremamente positivos e de forte impacto emocional, são, no entanto, usados hoje de um modo tão frequente e generalizado que podem correr o risco de gerar alguma erosão do seu mais profundo e sugestivo significado e resvalar para uma certa e inquietante banalização.
Este fenómeno faz quase inevitavelmente evocar o velho ditado popular que afirma que “o que é demais é moléstia” que, na sua modesta simplicidade, como é apanágio de todos os ditados populares, nos alerta para o risco de que uma determinada qualidade pode vir a perder o seu impacto positivo quando é utilizada de forma excessiva e, muitas vezes, sem o devido contexto que a torna realmente algo de especial.
Sejamos claros: a recompensa, o reconhecimento positivo e o elogio são naturalmente práticas que desencadeiam emoções positivas nas pessoas a quem se destinam e, por isso, são usadas como importantes ferramentas de motivação e como alicerces para a construção de relações sólidas e positivas. O problema é quando usamos essas práticas de forma imprópria ou inadequada, como seja criar ilusões às pessoas de que já são algo que (ainda) não são, gerar expectativas falsas de que a sua alegada “excelência” se venha a traduzir em alguma forma de recompensa material que tarda em chegar, ou então usar os exemplos dos que são supostamente reconhecidos como excelentes como “arma de arremesso” para aqueles que, também supostamente, o não são e ainda para os outros a quem se sugere que façam o que fizerem, nunca “lhes chegarão aos calcanhares”.
Por isso, se usarmos estes qualificativos de forma indiscriminada e sem grande lastro de substância, apenas para criar “bom ambiente”, podemos estar a premiar simbolicamente realizações que, afinal, não têm realmente nada de “extraordinário”, e a deixar outras pessoas que têm, essas sim, desempenhos realmente “excelentes”, um pouco frustradas por lhes estarmos a dar sinais de reconhecimento que não são expressivamente discriminativos.
Para evitar essas possíveis armadilhas, convém relembrar que a recompensa e o reconhecimento que, sendo embora diferentes, incluo numa mesma categoria para os objetivos deste texto, só são verdadeiramente poderosos quando fazem diretamente referência àquilo que cada pessoa, ou cada equipa, realmente alcançaram. É por isso que tem muito mais impacto dizer a uma pessoa “aquilo que (concretamente) fizeste está muito bem” do que dizer-lhe simplesmente que “és fantástico”.
Ora, num início de ano em que constatamos a evolução da tendência de “quiet quiting” para uma outra que já se vai desenhando como uma “loud quitting”, caracterizada pelo facto de um crescente número de pessoas colocarem nas redes sociais notícias sobre a sua desvinculação ou mudança das empresas onde trabalham, a gestão dos processos de reconhecimento e de recompensa assume uma elevada criticidade, particularmente no que diz respeito à captação e retenção de talentos.
E, muito embora seja compreensível que os líderes intensifiquem formas de comunicação e de reconhecimento para captar e manter os colaboradores que consideram os maiores talentos, será talvez prudente termos alguma parcimónia e, porventura, algum maior cuidado e contenção, na utilização de vocábulos que, embora possam fazer sentido numa lógica de incitamento emocional e de criação de uma cultura organizacional sustentada numa matriz de “mentalidade ganhadora”, possam conduzir, por outro lado, a ambiguidades e equívocos que acabam por gerar efeitos contrários àquilo que se pretende.
Sejamos objetivos: do ponto de vista humano, todos somos fantásticos, excecionais e bafejados com os estigmas da excelência…até prova em contrário; mas do ponto de vista profissional, somos ainda talentos em busca permanente de melhores oportunidades para se descobrirem e potenciarem.
Por isso, para um colaborador realmente talentoso e que tem em si a aspiração profunda e a capacidade para crescer, talvez seja mais eficaz ter um discurso mais objetivo sobre os possíveis horizontes de progresso que a organização lhe proporciona, do que estar a bafejá-lo com palavras que, muitas vezes, apenas servem para lhe alimentar o ego.
Como refere Roger L. Martin, “os colaboradores que são verdadeiramente excecionais, raramente, ou quase nunca, procuram obter um feed-back positivo, pelo menos diretamente (2). Como são “intrinsecamente e extremamente motivados”, não sentem uma permanente necessidade de aprovação e conseguem níveis muito elevados de sustentabilidade da sua motivação, mesmo em situações que podem ser objetiva e subjetivamente desfavoráveis.
Mas esses ditos talentos também são, obviamente, seres humanos e, apesar de a sua forte motivação intrínseca lhes conferir uma grande capacidade de resiliência e de resistência à frustração, os líderes e as organizações que os acolhem deverão ter a sabedoria para com eles praticar um tipo de reconhecimento e de recompensa adaptado às suas características.
Para responder a esse desafio, Roger L. Martin propõe, no artigo já citado, três ideias importantes para a motivação e a retenção desses talentos:
“Nunca rejeitar, à partida, as suas ideias”
As pessoas realmente talentosas levam muito a sério o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, pelo que investem muito do seu tempo a aperfeiçoarem os seus conhecimentos e competências. Este investimento pessoal, e uma apurada autoconsciência dos seus méritos e contributos para a organização, acentuam o sentimento de serem “proprietários do seu saber” e os principais construtores do seu próprio destino, pelo que gostam que as suas ideias sejam tomadas em linha de conta e respeitadas e discutidas com profundidade. Isto não significa, obviamente, que eles exijam que as suas ideias sejam necessariamente adotadas pelos líderes e pelas estruturas da organização, mas que sejam pelo menos tomadas em devida consideração.
“Nunca colocar obstáculos à sua progressão”
Quando um talento não consegue vislumbrar possibilidade de evolução de carreira dentro de uma organização, tenderá a procurar noutro lado essa possibilidade, o que o leva àquela atitude bem conhecida de andar “de nariz no ar” para captar “ventos” mais auspiciosos. Além das possibilidades de desenvolvimento e progressão na carreira, o talento valoriza trabalhar numa organização em que sinta que o campo de desenvolvimento da empresa é parte integrante do seu próprio campo de desenvolvimento como pessoa, ou seja, em que sinta alinhamento entre o seu propósito de vida e o propósito da organização a que pertence. E quando, em determinadas circunstâncias, a organização não conseguir de todo corresponder às expectativas do talento, é preferível que os líderes e responsáveis sejam claros e objetivos na comunicação desse facto, do que andarem com “rodriguinhos” manipuladores que apenas servirão para apressar uma eventual decisão pessoal de saída.
Não é só a falta de condições materiais que desmotiva um talento; é, sobretudo, a falta de coragem e de integridade dos seus líderes.
“Não deixar passar uma oportunidade para elogiar os seus méritos”
Apesar de os talentos serem pessoas que não pedem diretamente feedback positivo e que têm uma grande capacidade de automotivação, é fundamental que sintam, de forma individualizada, que a sua contribuição é reconhecida e valorizada pela organização. Neste sentido, Martin assinala que uma fórmula geral de reconhecimento do tipo “você obteve resultados fantásticos este ano”, pode não ter um grande significado para o colaborador, porque carece da devida individualização e contingencialidade em relação àquilo que a pessoa realmente alcançou. É por isso preferível ter uma maior parcimónia na utilização de adjetivos e dar ao talento um feedback concreto sobre o impacto positivo que a sua performance teve num domínio relevante da organização.
Em síntese, e sublinhando uma mensagem central já exposta neste texto, é necessária prudência na utilização de adjetivos do tipo “excecional”, “extraordinário”, ou mesmo ”excelente” perante desempenhos e ações que não são, realmente, diferenciadores; mas, para além disso, talvez seja também prudente usar de alguma contenção para aqueles que realmente o são, e guardar esses sinais de reconhecimento como “reserva anímica” para os usar em momentos concretos e específicos em que tais adjetivos tenham de facto o sentido e a substância que os justifiquem.
Se assim não for, tais epítetos correm facilmente o risco de resvalar para a banalização.
E banalizar aquilo que é verdadeiramente extraordinário é um risco que não devemos correr, porque, qualquer dia, já nem conseguiremos distinguir o que é uma coisa do que é outra.
Como na intemporal reflexão do Príncipe Hamlet, na tragédia de Shakespeare, mais uma vez, aqui, e sempre, “ser, ou não ser, eis a questão”.
Referências
-
MARTIN, Roger (2022). A New Way to Think: Your Guide to Superior Management Effectiveness. Boston, Massachusetts: Harvard Business Revue Press.
-
CAIN, Susan (2012). Silêncio: O Poder Dos Introvertidos Num Mundo Que Não Para de Falar. Maia: Temas e Debates – Círculo de Leitores.
-
MARTIN, R. (2022). Comment Retenir Vos Talents: Ou l’art subtil de faire en sorte qu’ils se sentent valorisés. HBRFRANCE.FR. Juin-Juillet,2022
Siga-nos no LinkedIn, Facebook, Instagram e Twitter e assine aqui a nossa newsletter para receber as mais recentes notícias do setor a cada semana!