Existem organizações e pessoas que ainda não sabem lidar com as preocupações e incertezas. A RHmagazine esteve à conversa com o Dr. Vítor Cotovio, médico psiquiatra e psicoterapeuta, para perceber o que deve ser feito pelas empresas e que mecanismos podem ser adotados pelos trabalhadores em prol da saúde mental.
Como é que avalia a saúde mental dos trabalhadores atualmente, em particular dos que são afetados pela pandemia no seu trabalho?
Nós passamos muito tempo nas organizações, seja de forma presencial, seja ligados de forma digital em tempos de trabalho remoto. Ao mesmo tempo, estamos a viver um momento de desorganização. É verdade que vamos transportar para as organizações aquilo que estamos a viver. E estamos a viver um espectro que combina aquilo que é o sentimento de medo com o sentimento de ansiedade, e ainda de angústia. E são três conceitos diferentes. Quando falamos de medo, falamos de uma resposta emocional e fisiológica àquilo que é uma ameaça eminente, que é real ou percecionada por nós enquanto tal. Se eu posso infetar ou ser infetado, vivo naquilo que é este medo e esta resposta emocional, e dentro do registo de ansiedade, que acaba por ser uma apreensão mantida perante a antecipação de uma ameaça futura. Se eu acho que a minha organização pode ficar comprometida na sua viabilidade, na sua sustentabilidade e na sua capacidade de me garantir o meu sustento, é evidente que eu vivo numa ansiedade permanente em relação ao futuro. E tenho ainda uma ameaça sanitária, dentro da minha organização, quando eu não sei se o meu colega do lado tem medidas de proteção e segurança adequadas. Esse medo e ansiedade são transportados para dentro das organizações.
Já a angústia é um sentimento que invade o profundo do ser e equivale a uma sensação que está muito ligada a um vazio, ou risco de vazio, e a uma falta de propósito. Medo, com uma ameaça eminente, ansiedade, com apreensão em relação à antecipação de um futuro viável ou não, e a angústia, com uma sensação de vazio. Imagine que isto é transportado para dentro das organizações.
Muita dessa ansiedade talvez deva ser tratada pelas organizações com uma melhor comunicação… Ao mesmo tempo, muitas empresas estão a colocar ao dispor dos colaboradores linhas de apoio psicológico. Nesse caso, o que acha que deve ser feito pelas organizações?
É verdade que isso está a acontecer, e acho que as duas coisas devem acontecer. Sou defensor do paradigma da complexidade e do que é sistémico. É importante que a relação entre aquilo que acontece na empresa, com os colaboradores, entre os colaboradores e com as lideranças, aconteça à luz de uma matriz de organização autentizótica. Se dou apoio, mas não há comunicação entre as valências de apoio, só estou a chutar um problema para debaixo do tapete. É muito importante que isto funcione segundo um paradigma que já está disponível para, sistemicamente, estar articulado com as ajudas específicas que eventualmente sejam necessárias. Nesse sentido, a organização quase que seria terapêutica. Seria uma organização que evitava ser destrutiva e tóxica. Neste momento, o contrário de tóxico é autentizótico.
Uma organização autentizótica é uma organização de confiança, autêntica, que se preocupa com os colaboradores além da produtividade e dos objetivos e metas. Uma preocupação com os colaboradores naquilo que é a sua parte cognitiva, psicoafetiva e emocional, e também com o que se passa em casa, se for caso disso. Porque se as organizações estiverem apenas em registo autocrático e não estiverem preocupadas com as variáveis, é evidente que se vai comprometer o objetivo da organização. Mas as metas e objetivos são mais exequíveis na base de uma organização autentizótica. Em clima de pandemia isso é ainda mais necessário, porque uma organização autentizótica procura ter sentido de propósito e significado, e cria um clima de satisfação.
Que sentimento de pertença é que aquela organização cria? A pessoa veste a camisola porque tem medo ou porque quer vestir e gosta? Que reconhecimento e política de reconhecimento é que existe? É uma organização que anda à procura de apanhar as pessoas a fazer as coisas mal ou que tenta apanhar as pessoas a fazer as coisas bem e reforça? Procuram potenciar as competências dos colaboradores e criar condições para que eles evoluam? Tudo isto que eu estou a dizer é o contrário do risco de burnout. Nós entramos em burnout quando temos menos reconhecimento, menos tempo para as tarefas, menos sentimento de pertença, menos capacidade de controlo, mais insegurança e mais imprevisibilidade. Quando isto acontece, a ansiedade sobe e produz-se menos. E o colaborador está ali porque tem que estar. O compromisso organizacional pode ser afetivo, e estou lá porque tenho vínculo afetivo à organização e identifico-me, instrumental, e estou lá por necessidade, ou ainda normativo, por obrigação.
Se eu conseguir combinar estes compromissos, integrados sistemicamente, é evidente que estou a contribuir para a produtividade da organização e, de uma forma não utilitária, não cínica, para o desempenho do colaborador.
Temos reparado que o papel do líder, mais concretamente do chefe de equipa do quadro médio, é cada vez mais importante. O que acha sobre este papel da liderança?
Acho que liderança é um processo de aprendizagem contínuo e toca a todos. Interessa-me que o colaborador que está na parte final do processo também tenha capacidades de auto-liderança, de inteligência emocional, de autorregulação, autocontrolo, auto-motivação, de empatia e de radar social para compreender os sinais que os colegas emitem. Nesse sentido, o conceito de liderança advém muito do que eu chamo de exemplaridade, e essa exemplaridade pode vir do líder de topo ou intermédio. Trata-se da consciência que tenho acerca daquilo que o meu exemplo provoca nos outros, e da minha responsabilidade na sequência dessa exemplaridade. A responsabilidade ligada ao meu exemplo, à forma como me coloco na relação com os outros e à forma como tenho capacidade de escutar o outro é uma variável fundamental no exercício da liderança. É um exemplo para conseguir influenciar, atingir objetivos comuns, e para que o colaborador se sinta ouvido. E quando se ouve, deve-se ouvir verdadeiramente.
Nestas circunstâncias, a empatia é provavelmente mais importante agora do que era há dois anos…
Sem dúvida. Sou defensor do conceito de empatia, mas atenção: é uma empatia que não é só cognitiva. Uma empatia cognitiva é uma empatia em que posso estar a tentar entender o outro racionalmente para depois o manipular a fazer aquilo que eu quero. Não é isso. É uma empatia cognitivo-afetiva, em que verdadeiramente me ponho no lugar do outro, e não utilizo a empatia de uma forma utilitária. Eu posso depois concordar ou não concordar, ou decidir fazer aquilo que a empatia me leva a fazer ou não. Chamo a isso de liderança em “duplo E” com “triplo foco”. “Duplo E” de ética e empática, e “triplo foco” de foco no externo, no interno e nos outros. O externo é os objetivos e metas, e o interno é autoconhecimento, autocontrolo e autorregulação. O foco nos outros traduz-se em empatia e radar social (capacidade de ler sinais). O líder, na minha perspetiva, além da empatia e ética, tem de ter esta capacidade de, tanto quanto possível, saber ler a comunicação não verbal do outro. Porque muitas vezes o outro pode estar com medo de dizer alguma coisa, porque acha que pode ser despedido ou pode não ser valorizado. E esconde ou diz coisas diferentes na comunicação não verbal. O líder deve conseguir ler aquela que é a maior percentagem da nossa comunicação, que é a não verbal.
E isso aprende-se?
Acho que se aprende também. Mas não acredito que existam líderes iluminados. Acho que há pessoas com um temperamento e carácter moldado pelas experiências de vida, e que na sua matriz constitucional possam ter mais apetência natural para liderança. Mas a liderança é um processo e desenvolve-se. Todos nós já vimos pessoas que tinham apetências e transformaram essas apetências em coisas erradas, porque se tornaram narcísicos. Há pessoas que têm carisma, e o carisma tem coisas boas, mas tem coisas megalómanas. Por isso, acho que a liderança se desenvolve, e há pessoas que podem ter temperamentalmente mais apetência. Até porque há líderes que são low-profile, líderes de bastidores. Há quem apareça a dar a cara, e há outros por trás que têm características de liderança, mas que não têm tanto “acting”. E para que a liderança seja ética também é preciso humildade.
A minha sensação é de que, no início, toda a gente gostou do teletrabalho. Agora estamos numa fase em que muitas pessoas já estão cansadas e querem voltar para o escritório. Mas ainda há quem não queira voltar para o escritório… Como é que uma empresa deve lidar com isso?
Acho que é importante a empresa entender, porque os objetivos da empresa e os objetivos da pessoa têm que estar alinhados. Quando estamos numa organização, os nossos objetivos não se impõem aos objetivos da organização. Combinam-se e integram-se. Há pessoas que podem gostar mais do teletrabalho por razões que podem ser boas ou más. Se o trabalho que fazem é um trabalho que pode ser produzido individualmente, e elas produzem de forma adequada, não haverá problema. O problema é quando é preciso a presença dos outros naquilo que é o desenvolvimento da equipa. Acho que o que vai acontecer é uma combinação de teletrabalho com trabalho presencial. Mesmo a nível arquitetónico, já vemos entidades a pensar em organizações com escritórios preparados para o teletrabalho e trabalho presencial. Se o teletrabalho pode bloquear o trabalho em equipa ou comprometê-lo, não será uma boa estratégia. Em Portugal, ainda temos muitos chefes e poucos líderes. E ainda temos líderes pouco diferenciados nestas variáveis que falámos. Líderes que acham que liderar é mandar, é dar ordens. Têm dificuldade em perceber, por exemplo, que determinado trabalho possa ser feito em casa, e que se possa produzir mais em casa. Só que não se está a picar ponto, e o chefe não está a controlar o colaborador. Confundem a fiscalização do trabalhador com o que é o verdadeiro desempenho do colaborador. É uma parte mesquinha do processo.
Que conselhos daria aos colaboradores para zelarem pela sua saúde mental?
Uma coisa é: como é que consigo fazer uma boa gestão de tempo e não estar sempre ligado? Tem de ser ensinado, mas há pessoas que são mais obsessivas. Como é que não deixo contaminar o meu tempo de distensão e relaxamento? Como é que ganho competências de gestão do meu stress, da minha comunicação, da minha capacidade de lidar com o conflito? Vou à procura dessas formações para melhorar ou aprendo com algum mentor ou coach que me vai ajudar a trabalhar estes aspetos? Que exercício é que eu faço e quando? Exercício é eliminar substâncias tóxicas e catalisar substâncias tónicas. Com exercício, baixo o meu cortisol. Sem exercício, sedentarizo aquilo que é o meu funcionamento, e, com a pandemia, corro o risco de obesidade informativa e celulite de notícias. Fico aditivo em relação a mais um noticiário, em vez de ir fazer uma caminhada de meia hora. Nas organizações, mesmo antes da pandemia, entrou a moda de programas de meditação e ginásios nas organizações. Mas cuidado com a espiritualidade de mercado, como dizia um autor. Não se deve “forçar” as pessoas a fazer meditação para que elas descarreguem e assim produzam mais. A meditação é mais para distender, e não tem propriamente um fim utilitário. As meditações, o exercício, o horário de descanso ou até ver séries… há pequenas coisas que são desintoxicantes. Quando saio do exercício, estou mais motivado. E os resultados não surgem imediatamente – é um processo.
Entrevista publicada na Edição nº 134 da RHmagazine.