Artigo publicado na Edição nº 95 da RH Magazine
Por: Arménio Rego e Miguel Pina e Cunha
O penalti é um estado de espírito
Nos quartos-de-final do Europeu de Futebol de 2004, Ricardo sacou das luvas corajosamente perante o inglês Darius Vassel. Defendeu o penalti (foi depois “repreendido” pela empresa que lhe fabricava as luvas!). No Mundial de 2006, o português voltou a ser o carrasco dos ingleses, defendendo três grandes penalidades (de Lampard, Gerrard e Carragher), o record num campeonato do Mundo. Após Simão Sabrosa ter feito 1-0, Ricardo afirmou aos companheiros: “Se eu defender o primeiro, ganharemos”. Lampard falhou, deixando os companheiros cabisbaixos e nervosos. Quando chegou a vez de Carragher, o nervosismo era tal que o jogador nem sequer esperou pelo apito do árbitro. O golo foi anulado. Antes da segunda marcação, Ricardo pensou: “Estás f*****. Vou defender este”. E defendeu. Ricardo teorizou sobre a matéria: (1) é preciso focar no positivo, encarando o penalti como oportunidade e não como problema; (2) importa não prestar demasiada atenção aos media pessimistas; (3) é necessário que o jogador e a equipa desvalorizem a história de fracasso, pois o próximo penalti não conhece os penaltis anteriores.
A psicologia do jogador e do grupo contam
Ben Lyttleton escreveu um livro sobre “A arte e a psicologia do penalti perfeito” que sustenta a teoria do herói português, aliás por si entrevistado. Nos penaltis, o modo como o jogador e a equipa lidam com a pressão é fundamental[1]. Glenn Hoodle, ex-selecionador da Inglaterra, equipa eliminada nas grandes penalidades pela Argentina no campeonato do mundo de 1998, afirmou[2]: “Penso que nove vezes em dez é possível saber se um jogador vai falhar. Como ele reage, o que os seus olhos estão a fazer, quando coloca a bola no local de marcação. E o percurso entre a linha de meio campo e o local de marcação é definitivamente, definitivamente, o tempo em que se marca ou se falha, na mente”.
Nas grandes penalidades, há mais psicologia do que futebol. A derrota do Benfica na última final da Liga Europa (14 de maio de 2014) corrobora a tese. A vitória da Holanda sobre a Costa Rica, por grandes penalidades, no último campeonato do mundo, parece ter sido igualmente influenciada pelo jogo psicológico. Quando se tornou claro que o desenlace requereria penaltis, Van Gaal fez entrar em campo, quase no final do jogo, o guarda-redes Tim Krul[3]. Não sendo um especialista, Krul usou de (e foi usado para fazer) jogo psicológico[4]. Eis, então, algumas curiosidades expostas por Lyttleton[5]:
- Os jogadores que encaram o guarda-redes de frente, quando se afastam da bola que acabaram de colocar na marca dos 11 metros, são mais bem-sucedidos do que os que se afastam da bola de costas para a baliza. Virar as costas é um indicador de fuga; fitar o guarda-redes é um indicador de coping
- O resultado dessa grande penalidade contagia a equipa e o jogador seguinte.
- O modo como o jogador reage, após marcar o golo, releva: (a) a celebração contagia positivamente a equipa e aumenta as probabilidades de o penalti seguinte ser bem-sucedido; (b) o “mero” sentimento de alívio reflete pressão e apreensão, que contagiam negativamente os restantes jogadores.
- As estrelas falham mais penalidades do que os jogadores menos brilhantes. O peso da responsabilidade (um penalti fracassado pode custar dezenas de milhões de euros ao clube[6]) e o receio de verem a sua imagem negativamente afetada tolhem-lhes o discernimento. A pressão dos grandes palcos, como campeonatos do Mundo, também diminui as possibilidades de êxito.
- É vantajoso para o jogador saber, o mais depressa possível, em que lugar está na sequência das marcações.
- O medo de fracassar aumenta as possibilidades de fracasso, e o foco no sucesso aumenta as probabilidades de êxito. Um segredo da seleção alemã parece ser a indomável garra para alcançar o sucesso.
- A ansiedade, que impele o jogador a correr para a bola o mais depressa possível de modo a acabar com o sofrimento , atraiçoa. Alguma lentidão na marcação pode aumentar os riscos de cartão amarelo, mas aumenta as probabilidades de vencer o guarda-redes.
- Uma penalidade que, caso resulte em golo, dará a vitória à equipa, tem uma probabilidade de sucesso de 95%. Mas uma penalidade que, se fracassar, gerará a derrota da equipa tem uma probabilidade de sucesso de apenas 55%. A expectativa de vitória conduz mais ao sucesso de que o receio de derrota.
- As equipas que reintegram emocionalmente o jogador que acaba de falhar um penalti são mais bem-sucedidas. Razão: os jogadores que seguidamente marcarão sentem-se mais apoiados e menos pressionados.
- A sorte conta! De facto, há vantagens para a equipa que chuta a primeira penalidade. Se tal marcação for bem-sucedida, o jogador da outra equipa pode acusar a pressão: se não marcar, coloca a equipa em desvantagem. Ou seja: o (já) golo do adversário é uma certeza, enquanto a atual marcação tem um resultado incerto[7].
A história também conta, pois influencia a mente dos jogadores e a dinâmica da equipa. Qual a probabilidade de um jogador de uma equipa que perdeu as duas últimas sessões de penaltis ser bem-sucedido na marcação de uma grande penalidade? Resposta: 57%! Essa percentagem cresce à medida que a história melhora, chegando a 89% quando a equipa ganhou pelo menos as duas últimas sessões[8]! Uma história de sucesso cria autoconfiança nos jogadores e na equipa, gerando um círculo virtuoso. Uma história de fracasso alimenta um círculo vicioso.
Estes efeitos ocorrem independentemente de o jogador ter sido ou não membro das equipas anteriores. Saliente-se que a história apenas conta na medida em que afeta a psicologia dos jogadores e as dinâmicas da equipa. Pode, pois, ser mudada. A seleção de Espanha de futebol, com mau historial durante muito tempo, venceu a sina e tornou-se a única equipa na história a vencer três grandes provas consecutivamente. Esperemos para ver o que sucederá após o fracasso no último mundial, no Brasil. A história conta, a sorte também – e o modo como as equipas lidam com ambas pode contar ainda mais.
O exposto ajuda a compreender algumas facetas da natureza dos indivíduos, das equipas, das organizações e dos processos de liderança. Exploraremos seguidamente as implicações, para as organizações, de lições extraídas da marcação de penaltis no mundo do futebol.
- a técnica conta, a psicologia também
No futebol, como na vida e na gestão das organizações, a psicologia pode contar tanto ou mais do que a técnica. Os indivíduos mais bem-sucedidos, assim como as melhores equipas e as melhores organizações, não são necessariamente os detentores de maiores qualificações e competências técnicas. A capacidade para lidar com a adversidade, o otimismo realista, a determinação, a capacidade para encarar os erros e fracassos como oportunidades para a aprendizagem são tão ou mais importantes do que as elevadas qualificações e competências técnicas.
A técnica é importante, mas não é suficiente. Os líderes de equipas e de organizações devem saber que, além de “recursos humanos” qualificados e tecnicamente competentes, devem fomentar e atrair a garra e a fibra dos seus “jogadores”. Devem também compreender que uma equipa, ou uma organização, repleta de colaboradores confiantes em si próprios não é necessariamente uma equipa, ou uma organização, autoconfiante. A equipa é mais do que a soma dos seus colaboradores, estrelas incluídas[9].
- o receio do fracasso pode tolher
Mesmo os grandes talentos podem falhar se ficarem mentalmente absortos pelas eventuais consequências negativas das suas ações. As pessoas, as equipas e as organizações mais eficazes são movidas por dois tipos de motivações: (1) evitar o fracasso, (2) realizar o sucesso. O foco acentuado no medo de fracassar diminui a iniciativa, a criatividade e a inovação – e aumenta a probabilidade de fracasso. Diferentemente, o foco realista e empenhado no sucesso, acompanhado de “garra”, estimula a ação, a experimentação, a criatividade e a inovação, incrementando as possibilidades de sucesso. Naturalmente, ambas a motivações são importantes. Mas há razões para supor que os líderes encorajadores do desejo de sucesso, que estimulam uma cultura de aprendizagem com os erros e fracassos, são mais eficazes do que os focados no evitamento do fracasso.
- liderar é gerir relações e emoções
Os melhores líderes, como os melhores treinadores, são bons gestores de emoções e da psicologia individual e coletiva. Líderes tecnicamente competentes, se forem desprovidos de competências sociais e emocionais, acabam por descarrilar. Sobre Guardiola, à época treinador do Barça e que depois rumou para o Bayern de Munique, escreveu o Diário de Notícias, em 22 de agosto de 2009:
“Guardiola assumiu-se como um exemplo perfeito de ‘coach’ para as multinacionais que atuam em Espanha. (…) O treinador do Barça tem inteligência emocional para controlar as suas próprias emoções, autoconfiança, poder de autogestão, transparência, capacidade de adaptação a situações novas, ambição, otimismo, iniciativa, empatia com os seus jogadores, capacidade organizativa, intuição, influência, capacidade para delegar a sua liderança em campo, habilidade para lidar com o lado humano das pessoas, não criticar publicamente os seus e saber gerir conflitos. Estas são características fundamentais para um líder do mundo empresarial.”
Os estudos sobre a inteligência emocional mostram que o QI, se não for acompanhado de inteligência emocional, é um fraco preditor do sucesso dos líderes. Há razão para supor que a inteligência social e emocional está associada a circuitos neuronais e padrões biológicos. Esta constatação não implica que a inteligência emocional “nasce” com a pessoa e é imutável. De facto, sabe-se que a mudança de comportamentos também afeta os circuitos neuronais. A galinha precisa do ovo, mas o ovo também precisa da galinha.
- celebrar vitórias, mas sem autodeslumbramento
As vitórias são influenciadas por numerosos fatores, alguns estando fora do controlo dos líderes e dos coletivos que lideram. Importa ter consciência desse facto, para que não se façam interpretações indevidas sobre as receitas do sucesso. Mas não pode descurar-se que, frequentemente, as vitórias e os sucessos representam sinais de que os indivíduos, as equipas e as organizações seguiram o caminho certo. Em qualquer caso, importa celebrar a vitória:
- A celebração gera emoções positivas que contagiam positivamente os restantes membros da equipa e podem alimentar o entusiasmo nas etapas subsequentes.
- A celebração é uma forma de elogiar os esforços realizados e estimular os esforços futuros.
- A celebração das pequenas vitórias ajuda a manterá a chama acesa. A longa espera pela celebração de uma grande vitória, que demora a chegar, pode induzir quebra da estamina energizadora dos indivíduos e das organizações.
Mas esta lógica deve ser complementada com duas notas de realismo. Primeira: o fracasso e os erros são inevitáveis. Importa tomá-los como oportunidades para a aprendizagem. Conta-se que o antigo líder da IBM, Tom Watson Jr., terá chamado ao gabinete um executivo que cometera um desaire de dez milhões de dólares. O executivo estava ansioso. Quando Watson o indagou “sabe a razão por que o chamei”, retorquiu: “Presumo que me chamou aqui para me despedir”. Watson respondeu: “Despedi-lo? Claro que não. Apenas despendi 10 milhões a instruí-lo”[10]. E recomendou-lhe, então, que continuasse a tentar. O Chief Science Officer da Eli Lilly (uma empresa do setor farmacêutico) implementou as “festas dos fracassos” para homenagear experimentações inteligentes mal sucedidas[11].
A segunda nota foi destacada por Mourinho após o fracasso da seleção de Espanha na Copa do Mundo de 2014. Do seu ponto de vista, a Espanha foi vítima do seu próprio sucesso[12]: “ A Espanha foi de tal modo fantástica nos últimos quatro ou seis anos (…) que as pessoas aprenderam, olharam, estudaram”. Lição: as fórmulas que geraram o sucesso do passado podem não suscitar o sucesso futuro.
- lidar o touro de frente
A vida em geral, a vida organizacional, assim como a liderança, envolvem desafios e dificuldades. Podemos enfrentá-los ou virar-lhe as costas. A estratégia mais eficaz é a primeira. Encarar os problemas com realismo, sem negá-los ou embelezá-los, é melhor remédio. Diferentemente, virar as costas ao problema é um risco muito sério: acabamos corneados pelo problema quando estamos distraídos ou dormentes. Evidentemente, não vale a pena desperdiçar energias com problemas de lana caprina – é preferível canalizar as mesmas energias para problemas realmente importantes. Pode também ser eficaz simular que estamos a virar as costas ao problema, e assim prepararmo-nos e atacarmos as raízes do problema em devida altura. Mas ignorar o problema, ou atuar como se ele não existisse, não é boa receita. Algumas lideranças narcisistas, ou hiperoptimistas, também tendem a subvalorizar os problemas – o que não é recomendável.
- importa que os liderados saibam o que deles se espera
A um líder requer-se que clarifique os papéis dos liderados. Importa que os liderados saibam o que deles se espera, seja no pico emocional que antecede os “penaltis”, seja no decurso “normal do jogo”. Clarificar o que se espera dos liderados é igualmente essencial para a eficácia da implementação de uma estratégia. Algumas organizações definem estratégias brilhantes, mas esquecem que a implementação das mesmas requer o empenhamento dos liderados na sua prossecução. Uma deficiente clarificação pode deixar os liderados à deriva e conduzi-los ao sentimento de que estão a ser infantilizados e não tratados como adultos.
- a sorte conta
Uma das maiores ilusões sobre as razões do sucesso e do fracasso dos líderes e das organizações é que a eficácia depende, predominantemente, dos líderes. Rosenzweig, professor da prestigiada IMD Business School, clarificou[13]: “A sorte joga um papel importante no sucesso empresarial (…) [Mas] o facto de o desempenho das empresas depender de tantas coisas fora de controlo não é motivo para desespero. Felizmente, há vários bons exemplos de gestores que encaram o mundo de modo claro, rigoroso e sem ilusões”.
Não haja ilusões: a boa sorte e o azar são variáveis importantes na equação dos sucessos e dos fracassos das equipas e das organizações. A existência de bons concorrentes é, indubitavelmente, a fonte do maior “azar”! Daqui não deve decorrer a noção de que o sucesso e o fracasso dependem predominantemente do acaso. Antes importa ter a humildade suficiente para reconhecer as forças dos adversários, e ser perseverante na busca dos melhores resultados.
Comentário Final
O futebol envolve a interação social de indivíduos, no seio de equipas, com o fito nos bons resultados. A marcação de penaltis é um momento crucial, envolvendo ansiedade, tensões, expectativas, explosões de alegria e frustrações. Algo do mesmo teor ocorre em muitos eventos e processos organizacionais. A liderança das organizações “normais” pode, pois, beneficiar de três aprendizagens com a psicologia do penalti. Primeira: a capacidade técnica é crítica mas não substitui a preparação psicológica. Segunda: partir para a bola derrotado é meio caminho andado para ser derrotado. Terceira: mesmo um gesto tão aparentemente simples como o subjacente ao penalti envolve um entrelaçado de competências (técnicas, interpessoais, sociais e emocionais) que importa considerar. Imagine então o leitor o que ocorre com decisões complexas!
[1] Cunha & Rego (2012).
[1] Jordet et al. (2012).
[2] In Kuper & Szymanski (2014, p. 162).
[3] Kuper (2014); Longman (2014).
[4] In Madureira (2014).
[5] Lyttleton (2014).
[6] Kuper & Szymanski (2014).
[7] Veja, também, Kuper & Szymanski (2014).
[8] Lyttleton (2014, p. 41), baseado em Jordet et al. (2012).
[9] Cunha & Rego (2013).
[10] Carroll (1993).
[11] Edmondson (2008).
[12] Khrishnan (2014).
[13] Rosenzweig (1997).