Ricardo Fortes da Costa
Diretor da RHmagazine e human capital director da Capgemini Portugal
É um tema que estudo e acompanho há anos com paixão, fruto das minhas multiatividades ligadas aos recursos humanos, mas também produto da minha natural preocupação com o futuro que espero ajudar a deixar aos meus filhos.
Para consolidar as minhas ideias para este artigo, consultei alguns dos principais estudos mundiais sobre o tema e constatei que nos espera um futuro no mínimo emocionante no mundo do trabalho e das organizações, fruto da 4.ª revolução digital que estamos a viver. Aliás, o estudo “Rewriting the rules for the digital age” (Deloitte, 2017) destaca de forma muito clara os contornos do desafio que hoje enfrentamos:
1. A produtividade não acompanhou o ritmo do desenvolvimento tecnológico. O que hoje conseguimos fazer com a tecnologia não é aproveitado porque continuamos a trabalhar como se estivéssemos nos anos 80. Por isso mesmo, continuamos a usar o e-mail como o principal meio de comunicação e arquivo, quando hoje temos espaços de colaboração muito mais eficientes, todos na cloud e alguns deles com custos perfeitamente marginais comparados com os custos tradicionais do IT. Isto para não falar do custo inerente ao “ruído organizacional” que o uso desproporcionado do e-mail criou, seja em termos de produtividade, seja em termos de saúde ocupacional e stress no trabalho (e fora dele, já agora, uma vez que estamos permanentemente “ligados”).
2. Quando falamos de produtividade nunca me esqueço da forma como tiramos notas, por exemplo. Continuamos a tomar notas muitas vezes sem um sistema montado que nos permita aproveitar a informação num flow eficiente e não tiramos proveito da capacidade das diversas aplicações comunicarem entre si, para criarmos um ecossistema ágil de produtividade, continuando à espera que grandes sistemas de informação dêem resposta a todos os nossos problemas.
3. Mas a produtividade também tem a ver com modelos mentais e modelos de gestão e organização do trabalho a nível corporativo. A verdade é que não organizamos os nossos rituais de gestão para tirarem proveito da tecnologia. Continuamos obcecados com o presenteísmo (temos de ver os colaboradores para sabermos que eles estão verdadeiramente a trabalhar), dando primazia ao paradigma do controlo em detrimento do paradigma da responsabilização, que permitiria o trabalho remoto, por exemplo, com toda a naturalidade. Rituais de controlo dos processos em vez de apuramento de resultados geram muitas vezes reuniões excessivas, redundâncias e desperdício, em muitos casos fruto de regras de compliance nas multinacionais que não são flexíveis o bastante para tirar o proveito devido das possibilidades que as tecnologias oferecem.
4. A legislação também não acompanha esta evolução, seja na tecnologia, seja naquilo que as novas gerações valorizam (o que dizer a um jovem engenheiro que me diz que quer fazer 15 minutos de almoço para depois sair mais cedo e ir ao ginásio? – segundo a lei, isso não é permitido).
Face a este cenário, o problema central reside na competitividade sustentável. A aceleração tecnológica acelerou o gap entre as organizações altamente eficientes e as que não acompanham o ritmo e, nunca como hoje, tantas empresas fecharam ou faliram, por não se conseguirem manter competitivas. Mas este cenário de dificuldade encontra-se cheio de possibilidades e caminhos possíveis. A organização do futuro já chegou, logo a agilidade da transformação vai ser decisiva. Por isso mesmo, destaco algumas tendências:
Carreiras e aprendizagem em tempo real – cada vez mais a aprendizagem tenderá a ser feita via multi-canal, por combinações entre trocas informais de conhecimento, playlists digitais de conteúdos e fortes experiências de aprendizagem em formato blended, baseadas na co-criação e na produção de resultados relevantes. Aprendizagem rápida, potente e significativa, como pedem os millennials, mas também as outras gerações. Abordagens de criação de experiências de aprendizagem como o recurso a MOOCs (Massive Online Open Courses), Hackathons, Shark Tanks, Human Libraries, Bootcamps, Innovation Labs e outras vão passar a fazer parte do nosso dia-a-dia no mundo das organizações, cada vez mais mesclado com instituições de ensino e players privados diversificados (produtores de conteúdos, coachs, evangelistas, etc.). As carreiras, por seu lado, serão definidas por projetos e pela capacidade de criar valor através da inovação permanente, numa perspetiva cada vez mais proteana das carreiras, em que combinamos saberes diferentes para gerar resultados cada vez mais diversificados, em equipas multidisciplinares em que as nossas responsabilidades vão variando ao longo da semana. Eu, por exemplo, comecei a semana como executivo, a meio da semana serei professor, jornalista, blogger e editor e terminarei esta semana como empresário e aluno. Este será o novo normal.
Uma nova ordem de competências – como o MIT evidencia no seu estudo “Aligning the Organization for Its Digital Future” (Kane, Palmer, Phillips, Kiron, & Buckley, 2016), a revolução digital requer muito mais skills de adaptabilidade, aprendizagem e mudança do que conhecimento tecnológico. A pirâmide de prioridades vai-se assim inverter. O movimento STEAM advoga a necessidade de combinar Science, Technology, Engineering, Arts e Mathematics. O espírito renascentista renasce assim com a 4.ª revolução digital.
Uma nova cultura – o erro como fonte de aprendizagem, o risco como parte do negócio e da inovação, as competências e o conhecimento como um fluxo permanente que tem de ser gerido por tendências e não por desenho individual, dando espaço à liberdade de cada colaborador aprender o que necessita e desenvolver a sua carreira de forma mais ágil e potente. Para corporizar esta cultura, vamos necessitar de estruturas ágeis, plásticas e por objetos de co-criação. Tal como o Spotify já faz, o futuro é das “brigadas” – pequenas equipas de projeto que se criam e desfazem à velocidade com que entregam resultados.
Recrutamento Cognitivo – as novas tecnologias estarão cada vez mais “casadas” com a identificação e atração de talento, permitindo aliar soluções potentes de automação de processos a machine learning preditivo sobre os melhores candidatos, bem como abordagens cada vez mais originais de comunicar a proposta de valor dos empregadores num ecossistema cada vez mais complexo, digitalmente ligado, mas que não dispensa (antes exige), cada vez mais conexão humana, significativa, rápida, mas relevante.
O primado da Employee Experience – os millennials procuram trabalho com propósito e são cada vez mais exigentes. Surge assim o conceito de Employee Experience Design, que cria jornadas de experiência para os colaboradores como antes se faziam jornadas para os clientes de uma organização. Cultura e engagement voltam a estar na ordem do dia, mas embutidos numa experiência, aquilo que os millennials compram. Também um recente estudo do MIT o confirma: a capacidade de atração de talento das empresas vai passar pela sua capacidade de usar o digital ao serviço da Employee Experience (Kane et al., 2016). Os millennials valorizam cada vez mais empresas tech. Tudo é experiência, num misto de digital e analógico, num misto de artificial e humano, mas sempre fluindo numa perceção de elevado valor acrescentado. Já Steve Jobs dizia que design é, na sua essência, a experiência do utilizador.
Performance baseada em feedback permanente – através, cada vez mais, de modelos mais simples e soluções digitais que permitem inclusive “gamificar” a performance de forma mobilizadora. Como nos evidencia o estudo “HR 2020: what the future holds” (Mercer, 2015), temos de reinventar a nossa proposta de valor: como nos apaixonamos por um trabalho? E como alimentamos essa paixão ao longo de uma carreira? Para tal, emerge a importância da comunicação: o EVP vale zero se não for comunicado de uma forma envolvente e mobilizadora. Comunicação é a palavra do momento.
A performance como um fluxo personalizado – empowerment, trabalho em equipa e liderança passam a ser o triângulo dourado a ser reinventado, quando temos forças de trabalho cada vez mais qualificadas, esclarecidas, livres, móveis e exigentes. Para tal, tenderemos a ter abordagens cada vez mais personalizadas nas missões, nos projetos, nas carreiras, nos benefícios, nas recompensas e no espaço de trabalho. A standardização está a morrer e a individualização é potenciada pela tecnologia.
O primado da participação multi-espacial – a tecnologia vai potenciar um estilo de trabalho cada vez mais participativo, em que os contributos fluem de forma mais eficiente e a distribuição de trabalho é mais produto da vontade voluntária de participar num projeto interessante e menos na imposição por design do posto de trabalho (que vai desaparecer nos moldes tradicionais). Isso vai ser resultado natural da inevitável desmaterialização progressiva dos postos de trabalho e dos horários de trabalho em favor de uma cultura de resultados. Para tal contribuirá também o crescimento dos agentes livres do trabalho e o decréscimo dos “empregados” tradicionais, com vínculos estáveis e exclusivos.
A Liderança reinventada – os profissionais vão ser expostos a vários líderes ao longo do ano, que passam a ser os seus clientes. As relações hierárquicas vão ficar esbatidas por vínculos menos fortes e uma mobilidade acelerada, que fazem dos novos líderes inspiradores de equipas e mentores dos seus colaboradores, tendo de ser os guardiões da visão de conjunto do feedback constante de múltiplos beneficiários do trabalho dos membros da sua equipa. Um trabalho de atenção permanente que tenderá a ser agilizado pela tecnologia.
Digital HR – um ecossistema com cada vez mais soluções, plataformas e interfaces, que podem comunicar entre si (obrigado API’s!) de forma fiável e ágil. Resta resolver o desafio da proteção e confidencialidade dos dados. A cibersegurança ajudará com certeza 🙂 Mas como nos alerta a Capgemini, a tecnologia só faz aquilo que lhes dizemos para fazer. Assim, uma visão clara do que queremos obter e um design dos fluxos de informação/ação que queremos promover são a base de partida essencial. Sem filosofia de nada serve a tecnologia. Com o machine learning surgem disrupções organizacionais brutais. Em vez de desenharmos career paths, programas de desenvolvimento ou competências por função, as máquinas vão poder definir ofertas de desenvolvimento personalizadas para que cada profissional possa ter sucesso no que está a fazer naquele momento em concreto. É o surgir da abordagem B2E (Business2Employee) com agentes virtuais de RH, como o IBM Watson, a potenciar a criação de uma EVP mais potente, pessoa a pessoa (Larsen, 2018).
People Analytics – cada vez mais informação a fluir gerará volumes de dados cada vez maiores. A capacidade de os processar e interpretar vai tornar o trabalho dos gestores e dos profissionais de RH algo de muito mais interessante, menos operativo e mecânico e mais interpretativo, fundamentado, certeiro e ágil (Deloitte, 2017). O analytics surgirá assim a suportar uma cultura de justiça percebida e de decisões cada vez mais fundamentadas (Mercer, 2015).
O desafio da diversidade e da inclusão – se a tecnologia pode facilitar a diversidade e a inclusão por via da aproximação de diferentes geografias e da capacitação de pessoas diferentes nas suas características psicomotoras, a aceleração tecnológica vai por outro lado acelerar o gap entre os mais capazes e os menos capazes. Há todo um mundo novo para legislar que evite que um cyborgue possa ter uma melhor recompensa porque o seu desempenho aumenta devido às suas próteses artificiais. Ou não… e quereremos todos ser entidades semi-cibernéticas…
A força de trabalho aumentada – robôs, inteligência artificial, realidade aumentada e computação cognitiva. Tudo isto aumentará a produtividade e poderá gerar obsolescência laboral. É uma crise ou uma oportunidade? Como vão a sociedade e as organizações tratar deste aparente paradoxo?
Como nos alerta o estudo “Workforce of the Future” (PwC, 2017), grandes decisões terão de ser tomadas sobre o futuro do trabalho nos próximos dez anos:
a) queremos um mundo mais fragmentado ou integrado?
b) queremos um mundo mais individualista ou coletivista?
c) o que vem primeiro? pessoas ou inovação?
d) a que dar primazia? à sustentabilidade ou à produtividade?
Sem responder a estas questões estruturais que irão moldar o modelo de organização de sociedade que queremos ter, corremos o risco de caminhar para uma convulsão social sem precedentes acelerada pela tecnologia. Ou ascender a um patamar superior de civilização.
Está nas nossas mãos decidir.
Artigo in RHmagazine, n.º 113, novembro/dezembro 2017