Autor: Mário Ceitil, Presidente da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas, Coordenador do Executive Master em Gestão Estratégica de Pessoas e Liderança do ISCTE/Executive Education
Já nos alvores da Quarta Revolução Industrial (Schwab & Davis, 2019) surgiam prenúncios promissores de um novo mundo do trabalho, que anteviam o início de um período de grande florescimento humano através do uso intensivo e em larga escala de tecnologias cada vez mais sofisticadas e máquinas cada vez mais “inteligentes”. Mas, mais do que uma simples revolução tecnológica, a Quarta Revolução Industrial inaugurava uma nova forma de olhar para as tecnologias não como um objetivo em si mesmo, acentuando apenas a visibilidade dos seus efeitos tecnológicos imediatos e previsíveis num futuro relativamente próximo, mas como uma nova forma de dar significado à vida profissional, na qual as tecnologias são vistas como “mais do que simples ferramentas ou forças inevitáveis, encontrando formas de dar ao maior número de pessoas a capacidade de impactar positivamente as suas famílias, organizações e comunidades, bem como influenciando e orientando os sistemas que nos rodeiam e moldam as nossas vidas” (Schwab & Davis, 2019).
A utilização inteligente e sinergética das diferentes tecnologias permite aos seres humanos o desenvolvimento de uma “Inteligência Aumentada” que, no essencial, se traduz em potenciar uma maior inteligibilidade sistémica do conjunto dos dinamismos e fatores que influenciam uma determinada situação ou contexto. Esta maior inteligibilidade, enquanto competência de elevado nível de complexidade cognitiva, associada a uma utilização também ela mais inteligente e responsável da tecnologia, pode gerar “ciclos virtuosos” de maior produtividade laboral, na medida em que, como refere Satya Nadella, no Prefácio a Moldando a Quarta Revolução Industrial, “as tecnologias inovadoras, somadas à força de trabalho treinada para usá-las de modo produtivo, multiplicadas pela intensidade do seu uso, propiciam crescimento económico e oportunidades para todos (Schwab & Davis, 2019.)
A melhoria geral das condições de vida dos seres humanos, não sendo um objetivo específico desta Quarta Revolução Industrial, uma vez que as inovações tecnológicas sempre foram encaradas, nas Revoluções Industriais anteriores, como ferramentas alegadamente dirigidas para essa mesma finalidade, apresenta-se aqui como uma afirmação mais inequívoca sobre o poder estruturante das tecnologias para potenciar nas pessoas uma maior capacidade de impactar positivamente não só as suas atividades profissionais, mas também as suas vidas pessoais, através de um verdadeiro e mais autêntico processo de “work/life integration” (op.cit).
Mais do que nunca, em qualquer época histórica anterior, nos encontramos agora perante uma verdadeira valorização do ser humano como pessoa, pelo menos enquanto princípio, salientando-se que as qualidades profissionais e as qualidades humanas interagem, ou deverão interagir, produzindo também aqui um novo “ciclo virtuoso” no qual as categorias e qualidades mais “especificamente humanas” das pessoas têm, ou poderão vir a ter, um enorme valor acrescentado.
Como é evidente, este desiderato só poderá, contudo, ser alcançado, se as comunidades humanas e as próprias pessoas forem realmente capazes de “estar à altura das circunstâncias”, sendo que, para tal, é essencial desenvolver novos sistemas, novas competências e, sobretudo, novas modalidades de “mindset” efetivamente alinhadas com estes novos princípios e valores.
Porque, como salienta Ross, “as tecnologias disruptivas podem ser uma dádiva, libertando os seres humanos para fazerem tarefas mais produtivas – mas apenas desde que estes criem os sistemas necessários para adaptar as suas forças de trabalho, as economias e as sociedades face à inevitável rotura. Os perigos para as sociedades que não souberem lidar corretamente com estas transições são evidentes” (Ross, 2016).
Seguindo esta linha de reflexão, muitos, ou a totalidade, dos modelos de gestão e das práticas deles decorrentes que estão diretamente alinhados com os princípios da Quarta Revolução Industrial, propõem uma integração permanente entre os dispositivos tecnológicos e organizativos relacionados com o trabalho com as respetivas componentes humanas, designadamente competências e “mindset”. De facto, se não houver sinergia entre estas dimensões, e se não houver um paradigma integrador que verdadeiramente possibilite o melhor aproveitamento tanto das potencialidades tecnológicas como das capacidades humanas, os sistemas tenderão ou a subaproveitar alguma das dimensões ou então a sobrevalorizar uma em detrimento da outra.
Se esta integração existir, poderemos estar perante um cenário em que de facto os avanços tecnológicos possibilitarão uma reconfiguração muito positiva das realidades do trabalho, em que “substituindo trabalhadores que faziam a rotina, tarefas metódicas, as máquinas podem amplificar as capacidades dos trabalhadores em áreas como resolução de problemas, liderança, inteligência emocional, empatia e qualidades criativas” (PwC, citada em Susskind, 2020).
No inverso, se não houver essa integração, as perdas podem ser muito significativas e alguns dos danos potencialmente irreparáveis, designadamente ao nível da gestão do capital humano. Os desafios são grandes e o tempo é curto para nos prepararmos para eles.
Os profissionais, gestores, colaboradores e líderes são todos convocados para um mesmo propósito: num tempo e face a realidades cada vez mais desestruturadas e desestruturantes, há que fortalecer internamente as estruturas humanas de forma a garantir a prevalência das categorias e qualidades mais profundas de cada equipa, de cada pessoa, de cada comunidade para, nesses ambientes disruptivos, nos mantermos focados, produtivos e motivados.
É também neste contexto de complexidade e de ambiguidade crescentes que se suscitam alguns dos principais desafios à ressignificação de velhos paradigmas sobre o trabalho, que o concebiam apenas, ou dominantemente, como um “meio de pagar as contas”. No fundamental, estes paradigmas emanavam de uma realidade socioeconómica na qual, e de acordo com as perspetivas da economia política de inspiração marxista, as relações tradicionais entre o capital e o trabalho eram, no contexto das sociedades “capitalistas”, inevitavelmente marcadas pelo fenómeno de “alienação do trabalho”.
Hoje, pelo contrário, e perante os novos desafios colocados pelas ondas da “tecnohumanização”, todos os profissionais são convocados para um novo “chamamento” profissional: o de, para além de serem os ”atores” principais, serem também os “autores” das suas histórias de vida. Na verdade, a “amplificação das capacidades dos trabalhadores” (PwC, citada em Susskind, 2020), possibilitada por máquinas cada vez mais inteligentes, permite que cada um se converta no “proprietário” do seu próprio trabalho, reapossando-se assim do sentido e do propósito que lhe tinham sido sonegados pelas modalidades de organização do trabalho e respetivas condições, geradas pela Segunda Revolução Industrial.
Este “reapossamento” de uma identidade profissional erodida pelos excessos de uma conceção maniqueísta do trabalho, assente nas antinomias radicais entre trabalho e capital, entre produtores e consumidores e entre quem concebe e quem executa, traz, como é óbvio, importantes consequências não só nas modalidades de organização do trabalho, como ao nível dos estilos de vida das pessoas, dando uma nova expressão e substância à realidade já anteriormente referida como “work/life integration” (Schwab & Davis, 2019.)
Com o incremento da autonomia, aumenta a capacidade e o efetivo poder de decisão e, consequentemente, a responsabilidade em relação às respetivas consequências; o trabalho deixa de ser concebido como “uma coisa má” ou “qualquer coisa a que se é obrigado” e passa a constituir uma fonte fundamental de socialização e de construção e consolidação da identidade, não só profissional, como pessoal e de cidadania.
O profissional da Quarta Revolução Industrial deixa, então, de ser um simples “operário” ou apenas “trabalhador” e passa a assumir com coerência e intencionalidade um papel de “prossumidor”, misto de produtor e consumidor, no âmbito do qual o trabalho passa a ser concebido como uma parte integrante e fundamental do seu próprio campo de desenvolvimento como pessoa.
O mindset tradicional é igualmente ressignificado de forma radical. O “prossumidor” já não é aquele que “só faz se lhe pagarem”; é aquele que “faz porque quer”.
Em conclusão, e como já referido anteriormente, os desafios são enormes e o tempo é escasso para nos prepararmos para eles. Estaremos nós à altura das circunstâncias e do papel histórico com que elas nos confrontam? Essa é a questão à qual os próximos tempos, e nós próprios, nos encarregaremos de responder.
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BIBLIOGRAFIA
ROSS, A. (2016). As Indústrias do Futuro. Lisboa: Conjuntura Actual Editora.
SCHWAB, K. & DAVIS, N. (2019). Moldando a Quarta Revolução Industrial. Lisboa: LEVOIR, Marketing e Conteúdos Multimédia, S.A.
SUSSKIND, D. (2020). Um Mundo sem Trabalho. Porto: Ideias de Ler – Divisão Editorial Literária.