Autores: António De Lemos Monteiro Fernandes e João Villaça, DCM | Litter
Avinda a Portugal do Papa Francisco I, em virtude da realização das Jornadas Mundiais da Juventude, foi assinalada por um ato de clemência consistente num «perdão de penas e uma amnistia de infrações», conforme o regime estabelecido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, designada como “Lei da Amnistia”.
No essencial, esse ato de clemência incidiu sobre as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto. Esta moldura deve entender-se válida para todo o regime de perdão e amnistia definido pelo diploma, embora alguma ambiguidade a esse respeito possa resultar de uma leitura menos atenta do seu texto.
Em primeiro lugar, é concedido um perdão de 1 ano sobre penas que não excedam 8 anos; são igualmente perdoadas sanções penais de menor importância, além de sanções acessórias relativas a contraordenações a que sejam aplicadas coimas de valor não superior a 1.000 euros. Esse perdão excetua, todavia, um vasto número de crimes.
Por outro lado, é estabelecida uma amnistia, a qual cobre as infrações penais cuja pena não ultrapasse 1 ano ou 120 dias de multa, e “as infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até àquela data, que não se revelem, em simultâneo, como ilícitos penais, e desde que não superiores a suspensão ou prisão disciplinar” – ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias.
Quanto a este último ponto, todavia, a Lei n.º 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar.
Em termos de consequências práticas, importará saber se as infrações que, no quadro das relações de trabalho privadas, tenham sido punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição) devem considerar-se cobertas pela amnistia estabelecida, impondo-se o seu apagamento dos respetivos registos disciplinares e a eventual devolução de valores salariais retidos.
Em geral, os anteriores diplomas referentes a amnistias não deixavam espaço significativo para tal dúvida. Tomando como exemplos os que assinalaram as visitas a Portugal do Papa João Paulo II, encontramos dois enunciados diferentes, mas que respondiam no mesmo sentido à questão posta. A Lei n.º 23/91, de 4 de julho estendia a amnistia às infrações disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, excetuando aquelas que, em simultâneo, constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida lei e tivessem sido punidas com despedimento. Por seu lado, a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais”, e incluía ao mesmo tempo nesse âmbito as “infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares”, sob as mesmas condições definidas pela lei anteriormente citada. Era assim claro que, pelo menos, as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas com as quais tivessem relações reguladas pela legislação laboral geral estariam excluídas do âmbito da amnistia.
A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei n.º 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art. 6º da Lei n.º 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia.
Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa.
Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores.
A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos arts. 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art. 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional.
Assim, pode bem interpretar-se o art. 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.
Resta saber se esta interpretação será acolhida pelos tribunais, em ações que a aparente ambiguidade da lei poderá ocasionar.