Numa sequência do filme “A Paixão de Shakespeare” em que Judi Dench tem uma breve intervenção no papel de Queen Elizabeth I, há uma frase icónica por ela proferida e que é dirigida ao Chefe da Guarda, quando este entra de rompante em cena para mandar encerrar o teatro onde Shakespeare ensaiava o “Romeu e Julieta”, clamando, em tom grandiloquente “Em nome da Rainha Elizabeth…”.
A Rainha, revelando-se por entre a massa anónima de espectadores onde estava escondida, profere, com uma magnífica interpretação, só conseguida pelos talentos de exceção e que mereceu a Judi Dench a atribuição do Óscar de Melhor Atriz Secundária, “Mr Tilney, cuidado quando usa o meu nome, que pode desgastá-lo”.
À semelhança de “Mr. Tilney”, também nós, todos nós, tendemos por vezes a (ab)usar de determinadas palavras ou expressões que, pela excessiva frequência do seu uso, podem correr o risco de registar algum desgaste e mesmo alguma deslocação do seu sentido mais profundo.
É o que, na minha perspetiva, acontece atualmente com os conceitos de Competência e Talento.
Esta reflexão surgiu-me, quando, no período previsto para perguntas e respostas na sequência de uma intervenção recente que fiz numa Universidade, alguém da assistência me colocou a questão de qual, na minha perspetiva, era a diferença entre Competência e Talento. Apesar da sua aparente simplicidade, esta questão apresenta alguns contornos que vale a pena aprofundar, sobretudo no que diz respeita à heurística da sua aplicação prática à Gestão das Pessoas nas organizações.
Talvez o ponto mais sensível desta discussão esteja no facto de o Talento, que pode ser simplesmente definido como uma coisa que uma pessoa faz melhor do que a maioria, com menos esforço e de modo continuado e sustentado, é muitas vezes associado a algo que é, em certa medida, inato, embora possa permanecer “escondido”, por assim dizer”, só se revelando quando e onde o núcleo central desse talento é estimulado. Nesta perspetiva, uma pessoa pode até possuir um Talento diferenciador, sem nunca, todavia, ter tido a possibilidade, ou a oportunidade, de o fazer florescer.
Tratando-se de uma característica mais estrutural, a existência de uma “predisposição” para o Talento pode, todavia, permanecer desconhecida pela própria pessoa durante uma grande parte da sua vida, se não existir a tal oportunidade para lhe dar lastro.
Mas como o Talento, tal como qualquer outra qualidade humana, aspira sempre à sua plena expressão, mesmo quando é desconhecido cognitivamente, o facto de uma pessoa possuir um Talento que desconhece e não é exercido, pode vir a manifestar-se através de uma sensação de desconforto que, a persistir, pode conduzir à ansiedade, à desmotivação e mesmo a um sentimento de revolta, mesmo que a pessoa não se dê conta de qual exatamente é o motivo dessa revolta.
É por isso que uma prática consequente e eficaz de Gestão do Talento, deverá ser orientada no sentido de “evocar o melhor que existe” em cada pessoa, estimulando a descoberta e incentivando-a a “ir mais além” no desbravar da sua riqueza interior, e não se limitar a uma pura gestão de regalias e benefícios, com a alegada e peregrina preocupação de “reter” esse Talento. Quando o Talento existe de facto, nunca será uma coisa para se “reter”, nem sequer para se “fidelizar”: é uma coisa para se libertar e é uma qualidade para se engrandecer.
Enquanto dinamismo psicológico, o Talento, quando existe, corresponde a uma força motivacional que impele a pessoa a dar sempre o “seu melhor”, sem tibiezas nem reservas mentais, porque o seu núcleo está carregado de energia emocional positiva. Ora, se, como afirma Goleman, “as emoções guiam a consciência para a procura de oportunidades”, é natural que uma pessoa que seja possuidora de um Talento esteja sobretudo focalizada na procura das oportunidades para exponenciá-lo, porque é daí que emana a sua principal energia emocional positiva.
E talvez esteja aqui um dos aspetos diferenciadores entre o Talento e a Competência.
Claro que se poderá sempre afirmar que o Talento é apenas uma sucessão consistente de Competências em ação. Do meu ponto de vista, esta classificação é algo limitada e não permite “tocar” naquilo que é realmente o aspeto mais diferencial entre os dois conceitos.
Na verdade, e do ponto de vista puramente empírico, existem, nas organizações, muito mais colaboradores com Competências atualizadas, do que colaboradores com Talento.
A diferença fundamental é que as Competências são dominantemente operações de natureza comportamental ou cognitiva, que são validadas em função da contingencialidade das situações. Ou seja, a Competência pode ser avaliada numa perspetiva puramente sincrónica: ou existe ou não existe, numa situação concreta.
Quando as Competências são mais “periféricas”, aquelas que habitualmente designamos por “Skills”, a sua atualização (ou seja, a sua colocação em prática) é uma ação de um domínio dominantemente comportamental, sem que isso pressuponha um envolvimento mais global e integral da pessoa, como a sua atitude e os seus valores, por exemplo.
Prova disso é quando reconhecemos que um colaborador “executa” uma Competência com um elevado nível de proficiência, embora se torne evidente que o seu domínio dessa Competência é puramente técnico; ele (ou ela), cumpre, de facto, todos os requisitos dos indicadores comportamentais requeridos, mas falta-lhe “substrato” e, sobretudo, falta-lhe “chama”.
Já o Talento é uma qualidade que só se evidencia numa perspetiva “diacrónica”, ou seja, ao longo de um percurso, e pressupõe a mediação de uma atitude intencional e estratégica por parte da pessoa que o detém. Esta característica pode dificultar o processo de seleção, quando o candidato é muito jovem e não tem ainda um currículo suficientemente sólido para dele se poderem extrair algumas hipóteses preditivas.
A atualização da Competência pode bastar-se a si própria: sou “bom” naquilo…e pronto.
O Talento, todavia, é algo que nunca desaparece do campo de consciência, porque a pessoa que o tem aspira sempre a mais.
A Competência pode ser uma forma de “estar“ numa função; mas o Talento, é uma forma de “viver” essa função.
Embora estas diferenças, assim enunciadas, possam ser consideradas muito subjetivas, na prática elas farão uma grande diferença, razão pela qual, na minha perspetiva, o conceito de Talento tem vindo a figurar cada vez mais no léxico da gestão das pessoas.
O Talento é mais “elitista” do que a Competência. E enquanto o exercício da Competência pressupõe motivação, a expressão do Talento exige paixão.
Por tudo isto, o Talento e a sua gestão correspondem a um desafio maior tanto para as empresas como para as pessoas:
- Para as empresas, que têm em definitivo que abandonar estratégias de gestão das suas pessoas ainda com base em formas mais ou menos clássicas de reconhecimento e recompensa. As novas gerações de Talentos, que têm já uma consciência muito ativa de que ser apenas bom já não basta para ter carreiras de sucesso, exigem das empresas que sejam espaços de aprendizagem e de desafio e uma forma de tratamento com base na integridade e na confiança;
- Para as pessoas, que sabem que, num momento em que a evolução tecnológica coloca sérias ameaças não só à empregabilidade como à própria saúde mental dos colaboradores das organizações, a principal aposta que podem, e devem, fazer para criar biografias de sucesso é, sobretudo e acima de tudo, tornarem-se e manterem-se, relevantes.
E o Talento, é a nova e mais profunda maneira de obter essa relevância, porque se inscreve nos novos desígnios de organizações que sabem que é de maior exigência, criatividade, inovação e sentido de propósito, que depende o seu futuro.
Já não se trata apenas de sobreviver, mas ir “mais além” nos modos de viver.