Autor: Mário Ceitil, Docente Universitário e Presidente da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas
P
or um excesso de liberdade linguística, utilizamos com muita frequência a expressão de “acontecimento histórico” em relação a situações que, em boa verdade, só poderão ser consideradas “históricas” para a história de vida das entidades ou pessoas nelas diretamente envolvidas, não tendo realmente nem o significado nem a abrangência que justifique elevá-las à categoria das coisas que, realmente, “ficam para a História”.
Mas hoje, estamos a viver um momento, ou mais propriamente um período, que vai realmente ficar na “História”, embora pelos piores motivos.
Ainda no rescaldo de uma terrível pandemia que tem ceifado milhões de vítimas em todo o Mundo, encontramo-nos agora perante a mais ensombrada e séria ameaça à paz e segurança mundiais desde o final da Segunda Guerra. Se, em Portugal, acrescentarmos a isto que, em pleno inverno, vivemos ainda uma das mais persistentes secas desde há várias décadas, que vai esgotando as reservas hídricas do país com as graves consequências que tal situação acarreta para as nossas vidas, estão reunidas condições para considerarmos este um momento verdadeiramente “excecional”, um daqueles momentos que, pela sua gravidade, vai obrigar-nos a pôr em causa muitas das coisas que tínhamos como garantidas e, consequentemente, a repensar os nossos paradigmas, as nossas atitudes e os modelos nos quais se alicerça a nossa representação mental da normalidade.
É também um momento em que se tornam evidentes os paradoxos de uma Humanidade que, tendo em muitos aspetos alcançado um dos momentos menos imperfeitos da sua História, vê as fantásticas conquitas que obteve, em termos de liberdade, justiça e maior bem-estar para uma grande parte da população mundial (não a totalidade, infelizmente), ameaçadas pelo ressurgimento do totalitarismo, nas suas manifestações mais bárbaras de agressão militar, com o seu horrível cortejo de sacrifícios humanos e uma ameaça muito real de uma guerra mais generalizada que poderá vir a conduzir a uma radical transformação do Mundo tal como hoje conhecemos.
É por isso também um momento em que nos assaltam os paradoxos da consciência e da natureza humanas.
Muitas vezes dizemos que o ser humano é capaz do melhor, mas também do pior; mas ao dizermos isto, vamos sempre acreditando que, à medida que a “civilização avança”, os valores emergentes e as cada vez maiores relações de interdependência vão, por eles próprios, gerando freios coletivos das pulsões mais primárias de omnipotência e um alargado conjunto de antídotos sociais da fúria.
Mas situações como as que estamos presentemente a viver parecem contradizer flagrantemente essas crenças, dando lugar à dúvida de que os precários equilíbrios obtidos podem não conseguir ser suficientes para desincentivar os ímpetos da força bruta, quando irrompe descarnada de qualquer juízo moral ou sentimento de compaixão, gerando exaltações que apenas convocam à materialidade do retorno ao mito ancestral do mais forte.
E à angustiante pergunta de “como é que chegámos aqui?”, não poderá ser indiferente o papel dos líderes transformacionais e da sua capacidade de gerarem movimentos sociais, em maior ou menor escala, que levam coletivos humanos a adotarem comportamentos muito mais dominados pela imperatividade de emoções desconexas do que por atitudes deliberadas de adesão a propósitos conscientes.
É certo que valorizamos muito as capacidades transformacionais dos líderes e a sua capacidade de mobilização das vontades humanas; mas esquecemo-nos por vezes de que os líderes também são pessoas e, como tal, estão igualmente sujeitos às determinações de uma natureza humana para a qual o bem e o mal não são noções adquiridas geneticamente, mas sim construções de mentes ativas e reflexivas que atribuem a essas noções a consistência significante e deliberada de um propósito.
Valorizamos muito as capacidades transformacionais dos líderes e a sua capacidade de mobilização das vontades humanas; mas esquecemo-nos por vezes de que os líderes também são pessoas
Ao aderirem ao propósito representado na figura do líder, os seguidores sublimam as emoções primárias geradas pelo efeito do carisma, e passam a sentir que estão a agir em favor de uma causa que acreditam justa e em nome da qual estão dispostos a praticar atos que, se não fossem percebidos como alinhados com o propósito que lhes dá sentido, poderiam ser considerados negativos ou mesmo repulsivos para a sua consciência.
Por isso, os tiranos precisam de uma boa causa para justificar a sua tirania.
Na verdade, se analisarmos a biografias dos grandes ditadores da História, verificamos que muitos deles não se limitaram a ser pessoas apenas animadas por uma grande ambição de poder ou sequer com uma grande ganância de bens materiais, mas tiveram sempre grandes narrativas, supostamente mais “nobres”, a suportar as suas ambições e a atribuir-lhes uma auréola mística ou mágica que serviu de justificação aos seus atos. Por essa via, todas as atrocidades históricas e todos os crimes contra a humanidade foram perpetrados alegadamente por uma “boa causa” que, para além de alimentar os delírios messiânicos dos líderes que a invocavam, foi sempre utilizada como instrumento de consumo interno para manipular as mentes dos exércitos e dos povos e para os convencer de que os sacrifícios estavam a ser feitos em prol do seu benefício ou para os proteger de agressões externas.
Como as grandes narrativas que sustentam as ditas “boas causas” não se esgotam no alcance de objetivos setoriais, o risco é de que, uma vez estes alcançados, logo outros e mais ambiciosos surgem para alimentar a antropofagia insaciável de um delírio que nunca se consegue satisfazer.
Por isso também, mais perigoso do que um líder com ganância, é um líder com ideologia.
Os acontecimentos que estão a ocorrer no “nosso Mundo” poderão vir a ter consequências graves e profundas para todos nós, como indivíduos, mas também para a nossa consciência coletiva. Os próximos e incertos tempos poderão vir a trazer o retrocesso a um novo período de obscurantismo à Europa e ao Mundo, mas poderão também vir a demonstrar que, apesar dos avanços de uma força bruta aparentemente difícil de deter, o Mundo já conseguiu gerar as “energias alternativas” para, mais uma vez, conseguir superar positivamente os conflitos e demonstrar que os mecanismos criados para defender a paz já são mais fortes e sólidos dos que os mantidos para fazer a guerra.
E, no final, a Humanidade irá prevalecer.