Autor: Mário Ceitil, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas, Formador, Docente Universitário e Membro do Conselho Nacional dos Psicólogos
Alguns afirmam que a saudade é o sentimento mais caracteristicamente português; mas outros, mais negativistas, postulam que a inveja não lhe fica atrás.
Para estes, que consideram a inveja como um dos elementos dominantes do “software mental coletivo” dos portugueses e ao qual atribuem uma das causas da alegada “pequenez” nacional, há, no entanto, algumas evidências que, para já, permitem aliviar a possível má consciência dos que por ela (a inveja) se sentem acossados: é que, como salienta Russell (1930), citado por Ascenso (2021), “apesar de ser uma emoção extremamente negativa do ponto de vista interpessoal, e potencialmente muito destrutiva para os relacionamentos humanos, a inveja é considerada uma das emoções mais universais e presentes nos seres humanos”. Além disso, e para realçar a sua dimensão de universalidade, “a tendência para sentir inveja é generalizada e parece estar patente em todas as culturas.” (Foster, 1972; Schoeck, 1969, citados por Ascenço, 20121).
Não é, todavia, esta “omnipresença cultural” da inveja que define o caráter da sociedade ou da pessoa que a experimenta, mas sim o modo como ela é gerida, superada e transfigurada de uma das “emoções morais que condenam os outros”, para se tornar numa “emoção moral que eleva os outros Ascenso, 2021).
Não faz, assim, qualquer sentido, atribuir a predominância deste tipo de sentimentos a características culturais em abstrato, porque o que verdadeiramente identifica a genuinidade de cada cultura e de cada ser humano é a maneira como cada um estrutura o seu sentido de vida e promove narrativas que lhe permitam honrar o seu passado e galvanizar estratégias para criar um melhor futuro.
Dito de uma forma mais simples e abrangente: não são os determinismos culturais, genéticos, de raça ou quaisquer outros que determinam as nossas histórias de vida, mas sim as escolhas que ao longo dela vamos fazendo.
Assim sendo, é realista sustentar a afirmação de que o sentimento de inveja, tal como outras manifestações emocionais igualmente tóxicas, só subsistem se e enquanto forem alimentadas pelos próprios que as sentem.
A boa notícia é que, sendo estas emoções suscetíveis de serem geridas e alteradas através de atos intencionais, que é aliás o domínio de eleição das intervenções em Inteligência Emocional, qualquer pessoa pode, em determinada altura, modificar as suas formas de agir, e até de sentir, desde que saiba como e, mais importante ainda, tenha vontade para tal.
Não se pense, todavia, que esta gestão é tarefa fácil, sobretudo quando lidamos com situações mais complexas, onde experimentamos emoções que, pelo seu carácter “nocivo” são mais difíceis de consciencializar e de admitir, como acontece com a já invocada inveja e com uma emoção que, embora seja conhecida desde sempre, só recentemente vem sendo objeto de uma abordagem mais específica no âmbito dos estudos sobre Inteligência Emocional: a “shadenfreude”, definida como “o sentimento de alegria ou satisfação perante o dano ou infortúnio de um terceiro” (Ascenso, 2021).
Pelo seu carácter declaradamente “antissocial”, as pessoas que sentem este tipo de emoções podem apresentar uma grande tendência para fazer ocultação desses sentimentos, seja perante terceiros, seja perante si próprios, refugiando-se muitas vezes em abstrações deterministas do tipo “somos todos assim”, ou então, o que é mais complicado, denegando a existência dessas emoções através de um processo que Daniel Goleman, entre outros, designa por “auto-engano” (self deception) considerado como um dos maiores dificultadores de um pleno desenvolvimento da Inteligência Emocional.
A “shadenfreude” é definida como “o sentimento de alegria ou satisfação perante o dano ou infortúnio de um terceiro” (Ascenso, 2021)
A “schadenfreude” (do alemão schaden/dano e freude/alegria), está quase indissociavelmente ligada à inveja, embora sejam diferentes, o que levou o famoso filósofo Schopenhauer a afirmar que “é humano sentir inveja, mas é diabólico deleitar-se com a ‘schadenfreud'”.
Ambas estão ligadas â tendência natural do ser humano para se comparar com outros para formar a narrativa da sua própria identidade. No entanto, e ao contrário de uma saudável comparação feita com a intenção de aprender com o diverso como forma de se tornar melhor, a comparação por inveja está carregada de emoções negativas contra o outro, e um desejo perverso, ocultado, mas persistente, de ou ser como ele ou ter o que ele tem.
Quanto à “schadenfreude”, a pessoa que experiencia esta emoção nas suas manifestações mais extremadas, sente uma alegria, por vezes esfusiante, quando está perante o desaire ou prejuízo dos outros com quem se compara competitivamente.
Esta alegria, embora intensa, é tendencialmente de curta duração e com muito pouca solidez, porque tanto a inveja como a “shadenfreude” são sempre expressões de um self frágil que, por incapacidade de uma saudável autoafirmação, só na visibilidade do insucesso do outro consegue encontrar, ainda que temporariamente, um sentimento próprio de sucesso que, todavia, nunca será nem suficientemente sólido nem temporalmente perene para mitigar a sua insaciável, mas nunca satisfeita, sede de reconhecimento.
A vivência deste tipo de emoções tem consequências que podem ser muito críticas em contexto organizacional. Conforme refere Ascenso (2021), “devido ao fenómeno claro e evidente de comparação social do desempenho dentro das organizações, onde, amiúde, se compete de forma explícita ou implícita para alcançar a melhor posição possível, a inveja é uma emoção muito frequente nas organizações, conjuntamente com os seus enormes prejuízos sociais e morais”.
Tanto a inveja como a “shadenfreude” são sempre expressões de um self frágil que, por incapacidade de uma saudável autoafirmação, só na visibilidade do insucesso do outro consegue encontrar, ainda que temporariamente, um sentimento próprio de sucesso
Apesar disto, o que é facto é que tanto em algumas práticas de avaliação de desempenho como em muitas ações e táticas de liderança, a competição horizontal, “canibalesca”, é estimulada, com a ideia peregrina de ser uma boa estratégia para se obter maior e mais consolidada produtividade por parte dos colaboradores. Em muitos casos, o que daí resulta é a existência de um ambiente de rivalidade agressiva, em que cada um vai trabalhar com a sensação inquietante de ter um gládio sobre a cabeça, com a agravante de que não se sabe quando e de que lado o golpe vai surgir.
Este é o ambiente típico daquelas organizações em que vemos colegas a exibirem a postura típica de celebração do sucesso, punhos cerrados e um “Yesss!!” em vocalizações triunfantes, quando algum outro colega, ou outra Direção da mesma empresa, sofrem um desaire; ou de outras organizações em que, em vez dessa alegria triunfante, são os sorrisinhos sardónicos e os cúmplices olhares de esguelha de satisfação que marcam a íntima consolação perversa pelo insucesso de outros.
Tanto em algumas práticas de avaliação de desempenho como em muitas ações e táticas de liderança, a competição horizontal, “canibalesca”, é estimulada, com a ideia peregrina de ser uma boa estratégia para se obter maior e mais consolidada produtividade por parte dos colaboradores
Talvez valha a pena recuar até início deste texto para afirmar que estes sentimentos, e outros que compõem a riquíssima e variada panóplia das emoções destrutivas, são, como então afirmado, “emoções universais e presentes nos seres humanos”. Esse facto, no entanto, não nos poderá servir de alibi para aceitarmos placidamente essa nossa “condição humana” e cedermos aos impulsos mais primários que nos afastam dos animais…para pior, já que a destrutividade intencional e consciente é, para o mal e para o ainda pior, apanágio exclusivo, mas não glorioso, da mente humana.
Porque aquilo que é verdadeiramente mais universal no ser humano, é a permanente luta contra todo o tipo de processos, biológicos ou sociais, que nos afastam daquilo que é mais nobre em todos nós: a nossa capacidade de nos elevarmos ao melhor de nós próprios e conseguirmos gerar narrativas, e as consequentes práticas, que nos ajudem a caminhar nos percursos complexos e desafiantes para criar grandeza humana.
O grande risco de o não conseguirmos fazer é o de, como refere Fromm (1975), “quando (o homem) não pode obter satisfação a um nível mais alto, ele cria para si mesmo o drama da destruição”.
Perante isto, a dúvida subsiste: que tipo de mundo ou, mais pragmaticamente, que tipo de organizações, queremos nós legar para o futuro?
REFERÊNCIAS
ASCENSO, J. (2021). Neurociências e Inteligência Emocional. Lisboa: PACTOR – Edições de Ciências Sociais, Forenses e da Educação.
FROMM, E. (1975). Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar Editores
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