Autor: Mário Ceitil, Presidente da APG (Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas)
No mundo pós-moderno, a tecnologia tornou-se no principal (e potencialmente único, a muito curto prazo) meio de partilha de informação e de conhecimento. Por isso, ela (a tecnologia) tem estado cada vez mais no centro das preocupações e das intervenções com vista a aperfeiçoar os sistemas de informação, sedimentando a ideia de que se quisermos ter melhor informação/comunicação e, por extensão, maior conhecimento, então temos de apostar em desenvolver tecnologias com maior potencial.
No entanto, a concretização deste desiderato enfrenta um grande problema: é que, como já foi referido há algum tempo por Kevin Thomson, “Technology does not equal techknowledgy” (1998), entendendo-se a “technology” como os meios, as ferramentas e os sistemas de produção de informação, enquanto a “techknowledgy” é a forma como utilizamos essa mesma tecnologia para a captação, produção e utilização do saber.
Ou seja, de pouco serve termos muita tecnologia ao nosso dispor, se não a soubermos utilizar e aproveitar adequadamente para os fins em vista.
Esta não é, todavia, a perspetiva de muitos especialistas e ideólogos da defesa do primado da tecnologia, para quem os produtos tecnológicos passam a ser automaticamente válidos pelo simples facto de se tornarem acessíveis aos utilizadores.
Nesta visão, a qualidade e quantidade da tecnologia determinam por si só o respetivo valor de uso, o que é mais ou menos equivalente a pensar-se que a qualidade e quantidade da informação e de conhecimento que cada pessoa detém estão diretamente relacionadas com a quantidade de livros que lá tem em casa, independentemente de os ter ou não lido.
Ora, como Peter Drucker já alertou há muitos anos, “é muito fácil confundir informação (data) com conhecimento (knowledge) e tecnologia de informação (information technology) com informação (information)” (cit. em Thomson, 1998).
Tendo isto em consideração, é equívoco pensar de forma linear que quanto melhores forem as comunicações (ou seja, o sistema ou as ferramentas requeridas para ter acesso à informação) mais elas se podem converter imediatamente em conhecimento útil para ser incorporado na cadeia de valor e obter maior retorno, redução de custos ou gerar mais lucros. O problema, mais uma vez, como alerta Thomson, é que a existência de melhores comunicações (tecnologia) não determina necessariamente que haja melhor comunicação, fenómeno de interação entendido como “troca de ideias e construção de um melhor entendimento da realidade que ajude a transformar a informação em conhecimento” (op.cit).
Talvez por isso se compreenda melhor o facto de os colaboradores das organizações se queixarem frequentemente de “falta de comunicação”, apesar de as respetivas empresas investirem cada vez mais em tecnologias de informação caras e sofisticadas. É que, mais uma vez, aqui, como em muitas outras situações, quantidade não é necessariamente sinónimo de qualidade.
O polo diferenciador e ao mesmo tempo integrador destas diferentes antinomias tem um nome: cliente, ou utilizador. É de facto o utilizador que dá verdadeiro sentido e cria a substância fundamental que permite diferenciar o que é comunicação e conhecimento, daquilo que é simplesmente informação. Esse sentido e essa substância têm igualmente um nome: perceção de utilidade.
Um sistema de informação/comunicação pode ser muito bom tecnicamente, mas só tem verdadeira eficácia se os respetivos conteúdos forem considerados úteis pelo recetor. Como o sentido de utilidade para o recetor é subjetivo, na medida em que cada um só presta atenção e integra conteúdos de informação e de comunicação que “encaixam” cognitiva e emocionalmente no seu próprio “modelo do mundo”, daqui resulta que a tecnologia em si mesma, mesmo a mais sofisticada, só será verdadeiramente útil se conseguirmos transformar os dados de informação em verdadeiros instrumentos de comunicação, geridos à medida e em função do recetor.
O problema não está, portanto, em dar ao recetor “toda” a informação disponível; o problema está em dar-lhe a informação “de que ele (ou ela) precisam” e que, como vimos atrás, é aquela que encaixa com o seu (do recetor) “modelo do mundo”. É isto que explica, por exemplo, o facto de a maior parte das pessoas que “lê” jornais se limitar a “passar uma vista de olhos” pelas páginas, mas só “ler”, de facto uma pequena parte do respetivo conteúdo. Porque é aí que está verdadeiramente “o que interessa”.
Esta regra também se aplica à vida das empresas, onde tantas e tantas vezes os colaboradores só prestam realmente atenção e só retêm igualmente uma pequena parte daquilo que o chefe diz: a tal pequena parte que contém “aquilo que interessa”.
Como a ciência nos tem trazido uma luz cada vez mais clara sobre estas dinâmicas dos processos de comunicação, toda a gente que se preocupa com estas coisas anda hoje numa azáfama muito grande para conseguir que as suas mensagens surtam o efeito desejado: e isto acontece tanto a publicitários, como a profissionais de vendas, profissionais de média e também a líderes das organizações.
Tendo em consideração que a perceção cognitiva de significado é fortemente influenciada pelas emoções, não é de estranhar que em vez de uma informação neutra e objetiva, que deixa ao recetor a liberdade da interpretação, os média tenham vindo a enveredar por uma estratégia que tem cada vez menos a ver com difusão de informação, e mais com praticar um tipo de comunicação expressa e intencionalmente desenhado para captar imediatamente a atenção do recetor: ou seja uma comunicação direcionada para a estimulação das emoções.
Com esse fim, as crises são agigantadas, as situações são dramatizadas, os crimes são quotidianizados, tudo feito com a intenção de “pregar” o recetor ao ecrã, seja ele qual for e quaisquer que sejam as circunstâncias em que ocorra.
Se quisermos observar este processo com um olhar crítico, basta sentarmo-nos durante algum tempo frente a um ecrã de televisão, e presenciarmos o verdadeiro cortejo de informações transfiguradas em desgraças, onde sobressaem a pústula, a ferida, o “lado negro da força”, ajudando a ampliar uma conceção do mundo a caminhar inexoravelmente para um climax apocalítico final.
Quando a informação é distorcida pela introdução de redundâncias feitas com a exclusiva finalidade de estimular emoções, não é igualmente de estranhar que muitas pessoas acabem por assumir que “conhecem” um tema, assunto ou realidade, apenas porque receberam uma informação “peneirada” pela intenção estratégica do emissor.
Por isso, a média tem um efeito poderosíssimo não só enquanto mobilizadora de emoções mas, sobretudo, como influenciadora de determinadas conceções da realidade, o que abre naturalmente as portas à possibilidade, diria mesmo ao risco, de ser aproveitada como instrumento de manipulação.
Cito, a título de exemplo, a abertura de um boletim noticioso onde o apresentador, em tom grandiloquente, anunciava: “Portugal pede socorro à Alemanha para a luta contra a COVID”. Pela forma como a notícia foi apresentada, ficar-nos-ia a impressão de que se trataria de uma notícia de grande importância, veiculada de forma entusiástica.
O conteúdo, no entanto, não tinha nada nem de entusiástico, nem de positivo. E para vincar melhor a sua negatividade, o apresentador utilizou o vocábulo socorro em vez de ajuda, termo que seria naturalmente mais neutro e, por conseguinte, mais informativo.
As circunstâncias do facto em si são demonstrativas do processo de, em vez de se ter limitado a, simplesmente, “dar uma informação”, aquele órgão de comunicação social ter veiculado uma “interpretação do facto”, neste caso usando uma forma de comunicar que lhe aumentou a negatividade.
Perante exemplos deste tipo, que no fundo, são reveladores de formas de distorcer informação, fica-nos a sensação de que, por vezes, a média nos apresenta uma imagem do mundo ainda mais negativa do que ele é na realidade.
E, no sentimento constrangedor e de uma certa revolta perante os múltiplos exemplos de utilização abusiva e nociva de ferramentas tão nobres e tão essenciais para a nossa qualidade de vida, às vezes só nos dá vontade de, em desespero de causa, ir simplesmente até ao Jardim da Estrela, sentarmo-nos com os velhos jogadores de cartas que ainda por lá andam, sem sonhos nem surpresas, e desabafar com eles, num resmoneio de resignação impenitente: “isto só à chapada”!
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REFERÊNCIAS
THOMSON, K. (1998). Emotional Capital: Capturing Hearts and Minds to Create Lasting Business Success. Oxford, United Kingdom: Capstone Publishing Limited.