Ser professor universitário num país como a França, onde os portugueses são vistos como pedreiros ou empregadas de limpeza, levanta alguns desafios de integração. Mas o maior é enfrentado no espaço privado da própria identidade: serei um emigrante em França ou um académico cidadão do mundo?
Numa conferência em Israel em 2009, o sábio hindu Ravi Shankar referia-se à identidade como fator ambivalente, capaz tanto de aproximar como de afastar. Nunca se é estrangeiro numa comunidade fundada na sua identidade humana. No entanto, sempre fui considerado mais ou menos estrangeiro na pequena aldeia alentejana perto de Avis, onde tenho uma casa de campo. Eu era de Lisboa, o mesmo que dizer «sem terra», sem sotaque, sem raízes. Diluído numa identidade demasiado grande para que seja possível nela vermos refletida uma fração de nós.
E é fácil sentirmos esta dispersão enquanto nos balançamos entre supostos opostos. Sentimo-nos cidadãos de um mundo concentrado em centros nevrálgicos: Paris, Londres, Nova Iorque, São Paulo, Tóquio, Xangai… e acrescentamos Lisboa porque nos pensamos a partilhar os mesmos gostos, as mesmas músicas, os mesmos filmes, os mesmos autores. Convencemo-nos, pois, da nossa identidade urbana e projetamo-nos a viver em qualquer uma dessas cidades: uma mansarda em Paris, um estúdio em Park Avenue ou um apartamento no Bund.
Foi com essa disposição de cidadão do mundo habituado a viajar que recebi o convite para uma grande école francesa, o ICN − Business School. Pouco ou nada sabia do sistema universitário francês. Em contrapartida, considerava-me relativamente bem posicionado no que se referia à sua cultura. Desde muito cedo que me habituara a apreciar cinema francês. Tinha lido avidamente Sartre, Camus, Beauvoir, Yourcenar, Duras. Admirava Pissarro, Renoir, Monet, Camille Claudel. O apreço francês pela cultura, o gosto pela discussão, tudo contribuía para me predispor a aceitar o convite.
Enquanto académico com trabalho publicado na área dos expatriados e nos seus esforços de ajustamento, sabia que, por maior identificação que sentisse, por mais semelhante que me parecesse, até Badajoz pode ser uma experiência difícil. Nem sempre por nossa culpa, por vezes contra os nossos maiores esforços, quando os outros têm a sua identidade radicada em histórias particulares mais vincadamente virá à superfície a diferença, a separação entre os de cá e os estrangeiros. Sabia também que Nancy não seria certamente Paris. Por isso procurei obter informações sobre a cidade. Rapidamente fiquei a saber que era uma cidade com património classificado pela UNESCO, de média dimensão mas com uma interessante atividade cultural. Decidi então percorrer as ruas através do Google Maps e encontrei uma cidade em tons pastel, casas antigas, aparentemente bem cuidada e limpa. Precisava de encontrar argumentos que me assegurassem que a minha integração, e sobretudo a da minha família, não seria dificultada também por uma alteração substancial no estilo de vida a que estávamos habituados. Mais importante do que a minha satisfação com a nova posição profissional seria a facilidade da minha mulher em prosseguir uma carreira profissional e a capacidade da minha filha de cinco anos (na altura) de aprender uma língua completamente nova e de se integrar num ambiente radicalmente diferente do que estava habituada.
Toda a pesquisa, todas as opiniões, todas as expectativas criadas ao longo dos quatro meses que mediaram o convite e a nossa chegada definitiva a Nancy foram substituídas pelas sensações recolhidas nos primeiros dias da nossa estada, não muito animadoras. Era grande o contraste entre a cidade limpa e organizada que tinha imaginado e a confusão que encontrei. Tentei justificar as diferenças pelo facto de ser uma tarde de domingo, por estar a chover e por estarmos num aparthotel numa zona diferente da cidade (a chave da nossa casa ser-nos-ia entregue no dia seguinte). Não me deixar dominar pelo pânico foi a melhor opção. De facto, rapidamente chegámos à conclusão de que aquela parte de Nancy não era a mais agradável, que a nossa nova casa – um apartamento totalmente remodelado num palacete do século XVII mesmo no centro da Ville Vieille – tinha sido uma excelente escolha, que estar a 7 minutos a pé do ICN era excelente…
E o primeiro ano em Nancy já passou! A novidade das cores vivas do outono, do Saint Nicolas, das primeiras neves, do frio intenso de 15°C negativos, de sentir calor quando chegamos aos 10°C… tudo isso já faz parte de uma prática comum. Sinto-me particularmente bem integrado profissionalmente: lentamente venho a construir uma rede de relações que me permitem suportar a ausência dos amigos e substituir os hábitos lisboetas por outros necessariamente diferentes; a distância ao poder, as diferenças hierárquicas, talvez por estarmos no meio académico, são bastante reduzidas; a minha participação nas atividades da escola tem sido crescente, sentindo-me como parte ativa da transformação estratégica que está a ser desenvolvida. Contra todas as expectativas e a ideia geral, o facto de pouco falar francês não tem sido um problema, antes é encarado como uma oportunidade para mostrar a diversidade do ICN.
A integração familiar dificilmente poderia ter corrido melhor: a minha filha passou a falar fluentemente francês em quatro meses e a minha mulher decidiu enveredar por uma carreira académica, sonho que acalentava há muito. Essa integração é facilitada pelo diluir das distâncias: um recém-chegado não sente a mesma saudade da pátria. Estou a 150 euros e cinco horas de viagem desde o centro de Nancy até Lisboa. Através do eixo Skype – Facebook o espaço ganha outra dimensão e o local onde nos encontramos perde esse significado de afastamento e solidão. A era digital permite uma fluidez que reequaciona as fronteiras entre diferentes espaços: leio o Público e o Expresso no meu telemóvel mas também o Le Monde e o Nouvel Observateur, vejo a SIC Notícias e o ARTE por cabo, oiço a TSF ou a Rádio Radar tal como as francesas FIP ou France Info… Em Nancy estou mais próximo de Lisboa do que em Avis, onde não tenho Internet e a rede de telemóvel nem sempre é fiável.
Contudo, há algo que persiste, que por vezes nos isola, mesmo quando nos vemos como cidadãos do mundo. E se a princípio tal é justificado apenas pela maior ou menor diferença nos hábitos, no clima, na língua, se investigarmos mais profundamente acabamos por julgar (re)descobrir uma identidade que nos parecia perdida: afinal falamos com sotaque, pertencemos a algo diferente e desconhecido, temos terra e raízes, as que julgávamos perdidas no nosso tempo de Lisboa. Mas que identidade é esta? Não obstante a integração profissional e social, uma questão com novos contornos emerge desta situação de estrangeiro: serei emigrante português em França? Serei autoexpatriado em França? Cidadão europeu? Académico cidadão do mundo?
E esta questão é tanto mais complicada quanto a identidade é, de facto, uma ideia partilhada entre quem «é» e quem «vê» que nunca controlamos totalmente. E ser português em França é partilhar de uma herança de décadas de emigração forçada por falta de meios e pobreza, que levava os mais fortes dos mais desprotegidos a «tentarem a sorte». A estreia do filme A Gaiola Dourada veio apenas relembrar esses estereótipos: o pedreiro, a mulher a dias ou porteira, o esforço conjugado com a facilidade de integração, a modéstia e a simplicidade, a vergonha das raízes. Como emigrante português em França, também eu sou um pouco tudo isto, são essas as minhas raízes e Portugal transforma-se na minha terra.
Mas na verdade fui convidado para lecionar em França, sou um académico que se dedica à investigação na área das ciências sociais, vim por opção para França tal como poderia ter ido para Inglaterra, para a China ou mesmo permanecido em Portugal. Ainda hoje, leciono em Nancy, em Paris e em Lisboa, como já o fiz em Luanda e em Xangai. Partilho dos ideais europeus e vejo-me como um cidadão do mundo. Nesta perspetiva, regresso à minha condição de lisboeta em Avis, órfão de terra e sem raízes.
Desta ambivalência resulta algo que se resume naquilo que efetivamente sou. Voltando à ideia do sábio indiano Ravi Shankar, escolho uma identidade que aproxima. Em França, em Nancy, no ICN, tomo consciência de que sou cidadão do mundo porque, agora que posso ver à distância, me sei, na diferença, português