A pandemia veio chamar, como nunca, a atenção das organizações para o tema da saúde mental. Devido essencialmente ao confinamento, muitas empresas aumentaram os canais de comunicação com os trabalhadores e também o número de iniciativas para promover a saúde e o bem-estar. Mas é preciso ir mais longe.
Dentro ou fora do escritório, é preciso garantir lideranças próximas, sensíveis e confiáveis, avaliar por rotina os riscos psicossociais e criar canais apropriados para a prevenção, deteção e acompanhamento dos colaboradores.
Quem o diz é Filipa Palha (FP), presidente da ENCONTRAR+SE – Associação para a Promoção da Saúde Mental, e Pedro Martins (PM), diretor de recursos humanos e organização da MDS Portugal, que, em entrevista à RHmagazine, falam da importância das relações humanas num mundo cada vez mais digital, da necessidade de adotar uma visão holística nas empresas e de ter lideranças preparadas para lidar com o tema da saúde mental com as equipas.
Como podemos criar relações de trabalho mais humanas?

FP: Trabalhando a dimensão humana das pessoas no local de trabalho. Olhando cada uma das pessoas que desempenham funções específicas durante 7, 8, 10, 12 horas de trabalho de uma forma holística, e reconhecer que existem outros aspetos das suas vidas que deveriam ser considerados no local de trabalho. Entre eles, a sua saúde (física e mental), o contexto social onde se inserem (família, amigos, comunidade onde vivem), acontecimentos de vida significativos, entre outros.
PM: Em complemento ao referido por Filipa Palha, gostaria de realçar que o papel da gestão de pessoas no contexto da transformação digital tem uma relevância acrescida, visto que a tendência é a passagem de modelos de trabalho tradicionalmente relacionais para modelos dependentes da tecnologia, processos, workflows que reduzem essas interações humanas. Deste modo é necessário promover momentos formais e informais de relação entre os colegas, não só para promover a comunicação e, desta forma, evitar eventuais conflitos, mas fundamentalmente para proporcionar ambientes empáticos, com vínculos emocionais e sentimento de pertença à organização criando assim, uma verdadeira cultura empresarial baseada nas pessoas.
Qual o papel das chefias em garantir a saúde mental dos colaboradores?
FP: As chefias têm um papel fundamental, considerando a proximidade que se espera que é expectável terem com as pessoas que fazem parte das suas equipas. Sabendo-se que uma em cada cinco pessoas passa por um problema de saúde mental num determinado ano, e que o nosso bem-estar psicológico/mental é determinante para a boa utilização das nossas capacidades, é evidente o papel das chefias nesta matéria. Não podemos ignorar, no entanto, que, lamentavelmente, também nos deparamos com chefias altamente tóxicas responsáveis pelo adoecer mental daqueles que deles dependem.

PM: As chefias são o elemento fundamental na deteção precoce da saúde mental tendo em consideração a proximidade e conhecimento que têm dos seus colaboradores. Faz parte do seu papel de líder “tomar o pulso” da equipa e estar muito atento a todos os sinais de aumento de mal-estar e diminuição do seu desempenho profissional.
No entanto, é preciso não esquecer que as próprias chefias não estão imunes ao risco de doença mental, muito pelo contrário, pelo que, mais do que uma responsabilidade hierárquica, o garante da saúde mental é de toda a equipa, de toda a organização, e devem ser utilizados todos os canais disponíveis para se poder atuar preventivamente.
Como é que as chefias podem estar atentas e intervir? Que mecanismos podem ser criados dentro das organizações?
FP: As chefias precisam, antes de mais, de ter literacia em saúde mental para poderem ser sensíveis a sinais e sintomas de alerta, e para saberem como agir perante diferentes cenários. É, igualmente, importante que o tema do bem-estar psicológico e da saúde mental seja falado abertamente, que seja reconhecido por todos que faz parte dos valores organizacionais tratar a saúde mental de forma idêntica à saúde física.
Atendendo ao estigma que ainda existe, o início de certos programas nesta área parte da partilha de experiências de pessoas de relevo na empresa. O exemplo do português António Horta Osório, CEO do Lloyd’s Banking Group do Reino Unido, devia ser mais conhecido pois demonstra como todas as pessoas, independentemente das suas capacidades e/ou lugar que ocupam, podem passar por um problema de saúde mental. Partindo da sua experiência pessoal, Horta Osório reconheceu a importância de atender a esta dimensão da saúde e implementou uma política de promoção da saúde mental nos cerca de 65 mil colaboradores do banco.
De forma particular, um dos aspetos que já devia estar acautelado nas empresas é o da avaliação sistemática dos riscos psicossociais.
PM: Antes de mais destaco o papel da sensibilização e formação no âmbito da saúde mental. Mas a formação por si só não é suficiente. A empresa deve dispor de canais apropriados para apoio à prevenção, deteção e acompanhamento dos colaboradores.
No caso da MDS, para além da formação dada para ajudar os colaboradores a identificar precocemente eventuais sinais nos próprios ou nos colegas, complementamos o seguro de saúde, disponibilizado a todos os colaboradores da empresa, com acesso a consultas de psicologia.
O medo de não ser compreendido ou julgado pode ainda condicionar muitos profissionais a pedir ajuda. O que é que as chefias devem fazer para garantir que os profissionais se sentem à vontade para partilhar realmente aquilo que sentem?
FP: O estigma na doença mental ainda é um enorme obstáculo que não pode ser ignorado. Estamos a falar numa mudança de mentalidades que estão alicerçadas em preconceitos milenares. Só em ambientes seguros, com chefias genuinamente sensíveis e confiáveis, é que os profissionais podem sentir à vontade para partilhar experiências desta natureza. Temos pela frente um longo trabalho que obriga a ações concertadas, consistentes e contínuas.
PM: Neste âmbito, como em todos os aspetos culturais que estão enraizados na nossa sociedade, o papel da sensibilização e formação é fundamental. São processos de transformação morosos e o papel da empresa é não deixar cair o tema, evitar fenómenos de moda e, persistir ao longo dos anos, na capacitação dos colaboradores para lidar com situações próprias e com os colegas.
Quais os aspetos que devem nortear uma empresa com uma cultura organizacional “mentalmente saudável”?
FP: Como em qualquer outra área da saúde, é necessário medidas de promoção da saúde mental, de prevenção, de intervenção precoce e de recuperação/ reintegração.
Apesar da importância que tem vindo a ser dada aos fatores psicossociais determinantes para o bem-estar no trabalho, a dimensão psicológica/ mental ainda é raramente abordada. As relações interpessoais, a organização do trabalho, as fronteiras entre o trabalho e a vida pessoal, a conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional estão entre os aspetos a ser considerados na criação de uma cultura organizacional que pretenda ser “mentalmente saudável”.
PM: A saúde mental deve ser uma pedra basilar na cultura da empresa, com âmbito temporal alargado e perene. Se alguma coisa aprendemos com a pandemia é que grande parte das empresas do setor dos serviços, como é o caso da MDS, podem (e devem) deixar de estar vinculadas ao tradicional modelo de trabalho presencial “das 9 às 5”. Modelos de teletrabalho e flexibilização horária permitem um equilíbrio mental resultante da conciliação entre a vida pessoal e profissional.
Ainda assim é fundamental não correr riscos de corte de vínculos relacionais e emocionais entre os colaboradores e a empresa/equipa. A responsabilidade da organização pela promoção de momentos de relação interpessoal entre os seus colaboradores é acrescida em contextos laborais mais flexíveis. Neste contexto, a promoção de uma comunicação de confiança e empática torna-se simultaneamente um desafio e uma condição sine qua non de sucesso.