Por diversas razões e sob diferentes ângulos de perspetiva, as questões relacionadas com a liderança readquiriram uma atualidade e uma relevância assinaláveis com a recente crise do COVID-19, concretamente no que diz respeito à alegada necessidade de haver, nesta fase conturbada e de “distância social”, uma presença mais interventiva dos líderes junto das pessoas e das equipas, ainda que em ambiente remoto.
É uma asserção que não é de surpreender, sobretudo se tivermos em linha de conta que muitas das teorias e modelos mais correntes têm enfatizado a ideia de que a necessidade de liderança aumenta na razão direta das dificuldades de auto estruturação sentidas pelos colaboradores e pelas equipas, exigindo, por isso, uma presença mais frequente e interventiva do líder. Como, nesta fase difícil, as pessoas enfrentam generalizadamente maiores tensões emocionais que as podem levar mais facilmente ao risco, ainda que temporário, de perda de foco, uma ação de maior “proximidade” (mesmo que só digital) dos líderes pode ser de facto importante para o restabelecimento de uma base sólida de confiança que incite os colaboradores a nutrir uma crença positiva num futuro melhor e, com isso, travar um possível (ainda) maior desgaste do seu “capital psicológico.
Mas este maior incremento da “procura” de liderança, nem sempre encontra uma resposta equivalente na desejável “oferta” de líderes e de práticas de liderança que estejam verdadeiramente alinhadas com os maiores e mais prementes desafios do presente.
Muitos líderes, ou, no mínimo, pessoas investidas dessa responsabilidade, ainda lidam com algumas ambiguidades e inconsistências de paradigmas relativamente à sua identidade no exercício do respetivo papel e das correspondentes práticas de liderança, em contextos sociais e organizacionais onde “o advento dos computadores aplanou a hierarquia das organizações”, diluindo as fronteiras formais entre chefes e não chefes e “democratizando” de uma forma alargada a distribuição dos poderes dentro das organizações.
Este processo, que tem vindo a ser crescente, pode constituir uma relativa ameaça para aqueles que, ainda inspirados por uma visão muito tradicional e equívoca de liderança, têm usado o domínio da informação com fonte de poder e hoje se veem limitados no (ab)uso dessa poderosa ferramenta pelo facto de os novos sistemas tecnológicos “abrirem os portões de informação a toda a gente”.
De facto, as organizações de hoje são constituídas cada vez em maior escala por cidadãos de maior maturidade, maior consciência de si e do seu papel e muito maior poder de intervenção e de decisão pela possibilidade praticamente ilimitada de se tornarem coproprietários desses dois fundamentais ativos das cadeias de valor das organizações pós-modernas: a informação e o conhecimento.
É justamente através deste processo de empoderamento efetivo e da consequente conquista de maior autonomia que faz sentido a replicada afirmação de que hoje “todos somos líderes, pelo menos de nós próprios”.
Toda esta dinâmica evolutiva das conceções e dos processos de liderança tem vindo a ser sucessivamente tipificada através de metáforas ou analogias que têm representado os contrapontos paradigmáticos entre diferentes modelos: passar da lógica de “chefe de orquestra para líder da banda jazz”, substituir o processo de “puxar pela equipa” para o de “empurrar a equipa”, passar do papel de “atribuir tarefas e responsabilidades” para o de “encorajar os corações” e, para não ser demasiado exaustivo, abandonar a equívoca missão de “fazer com os outros façam” para se tornar um integrador e facilitador “líder coach”.
E, se bem que os modelos tenham de facto evoluído para uma conceção de líder como um “dever ser” um exemplo de integridade, como alguém que exponencia o “best” em cada pessoa e como um construtor de propósito e de confiança, ainda há muitos que, arvorando-se de tais bandeiras, estão ainda, nas suas práticas, e mesmo nos seus paradigmas mais profundos, prisioneiros de lógicas puramente egocêntricas e narcisistas. Esses líderes estão ainda demasiado limitados por uma certa ”cegueira sistémica”, ou seja, centram-se nos seus interesses e estratégias próprias, tanto pessoais como dos territórios sob a sua responsabilidade direta, mas perdem o sentido da indispensável dimensão colaborativa que cada pessoa e cada equipa tem de ter para a concretização de um “bem maior”.
Mas é justamente a dedicação e o espírito de serviço a essa “causa maior” que constitui o verdadeiro húmus da elevação dos líderes e da grandeza das suas lideranças.
Por isso, hoje, numa sociedade onde o maior imperativo moral é a contribuição efetiva e perseverante para o bem comum, não basta que um líder simplesmente “aja” como líder: tem de o sentir profundamente no seu “inner self” e fazer da sua missão como líder uma verdadeira, consciente e assumida missão de vida.