POR: Maria Albertina Nogueira – Consultora e formadora de RH do Espaço Emocionarte
A influência dos toques e carícias preceituados na análise transacional de Eric Berne na valorização pessoal e o impacto nas várias dimensões existenciais da pessoa, no âmbito da qualidade e no nível de vida.
Era uma vez… Com o passar dos anos, apercebo-me melhor de que a maioria de nós tende a aperfeiçoar a nossa capacidade de contar histórias, considerada hoje uma das formas mais eficazes de comunicar pessoal e organizacionalmente (storytelling). Talvez isto ocorra devido à nossa memória afetiva dos tempos de criança, que reaviva em nós as histórias que nos foram contadas, e/ ou porque, ao longo das nossas vidas, muitas foram as histórias que contámos aos filhos, aos netos, aos amigos, aos alunos…
Começo, por isso, por abordar a temática do investimento na valorização pessoal, com o clássico e mágico «Era uma vez…». Era uma vez um pai de família à moda antiga, leia-se família com mais de quatro filhos. Este pai de cinco filhos, à semelhança da maioria de todos os pais, achava que conhecia muito bem a sua prole e com muito orgulho apresentava os seus filhos aos amigos um a um, descrevendo de modo enfático as características de cada um deles, cuidando, na sua boa-fé, de lhes desenhar o futuro a haver. No entanto, apesar de serem cinco filhos, como mote para este artigo vamos deter-nos apenas em dois filhos deste amoroso pai, na verdade, em duas filhas: a Joana e a Josefina, nomes fictícios. O nome do pai, também fictício, era José, tudo com J para combinar. Pois bem, José, ao apresentar a Joana, então com os seus 13/14 anos, fazia-o da seguinte forma: «Esta é a minha Joana, a intelectual. Adora estudar! Vai ser a doutora da família…». Já sobre a Josefina, com 11/12 anos, José dizia: «Esta é a minha boneca. Veem como é linda, muito linda, não é verdade? Não gosta lá muito dos estudos, mas sabe cuidar muito bem da casa. Vai ser uma excelente mãe de família.» Passados 30 anos, como terá decorrido a vida da Joana e da Josefina, perguntamo-nos?
Eis a resposta: Joana licenciou-se em medicina e está muito bem profissionalmente. É a doutora da família. Tem como sonho conquistar um marido e ter filhos (ou conseguir deixar-se conquistar). Quanto a Josefina, esta mal conseguiu concluir o secundário, casou aos 20 anos, teve filhos e assumiu, predominantemente, o papel de dona de casa. Tem como sonho conquistar a sua autonomia económico-financeira.
Em cada uma dessas vidas parece existir um gap em termos de realização, ou seja, à Joana falta a realização na dimensão do relacionamento conjugal e na maternidade; à Josefina, a realização profissional e também financeira. O citado gap pode decorrer da ausência de um fator fulcral na vida das duas mulheres, ou seja, falta-lhes o que o presente artigo pretende abordar, um nível melhor de valorização pessoal, o qual se traduz na presença viva de um profundo sentimento de valor pessoal, sentimento de merecimento, sentimento de capacidade, sentimento de querer, acreditar e ser capaz. A história da Joana faz-nos lembrar alguém no consultório do analista dizendo: «[…] Espelho, espelho meu, existe alguém que seja mais feia do que eu, ops!, digo, mais bonita do que eu?». Que ato falhado… E a Josefina, esta sem dinheiro para pagar a um analista, ao olhar-se ao espelho, parecia dizer: «Em vez de seres tão linda como dizem, podias ser mais inteligente, concordas?».
Analisando a história Diante destes dois percursos de vida, terá o «prognóstico» de José contribuído para a ocorrência do que o sociólogo Robert K. Merton (1949) denominou de «profecia autorrealizadora» e/ou «profecia que se realiza por si própria», ganhando autonomia e vontade próprias? A esta questão respondem as mais diversas investigações no domínio das ciências sociais (em especial, a sociologia da educação, a sociologia da família e a sociologia das religiões) e, mais recentemente, as neurociências, através designadamente das investigações sobre psicologia positiva, equipas positivas, reforço positivo, pessoas positivas e organizações e lideranças positivas vs. organizações e lideranças tóxicas (Pina e Cunha et al., 2007). Mas os cenários descritos neste «era uma vez» fornecem-nos certamente pistas importantes que confirmam a grande influência do que Eric Berne, pai da análise transacional, denominou de «toques ou carícias», que são sinais físicos ou simbólicos de reconhecimento de uma pessoa em relação a outra. Estes sinais tanto podem ser elogios ou críticas e contribuem fortemente para a formação do autoconceito a quem são dirigidos, tendo por isso um papel relevante, nomeadamente na infância e na adolescência. No entanto, «a diferença que faz diferença» quanto aos efeitos positivos ou negativos dos citados «toques e carícias» depende da perceção de quem os recebe. Por isso, uma palavra dita com intenção de elogiar, se for percecionada como menosprezo, poderá trazer consequências dolorosamente negativas.
Voltando à Joana e à Josefina, cabe ainda perguntar: como teriam sido as suas vidas caso não tivessem recebido, ao longo da infância e adolescência, as mensagens (toques/carícias) com os binómios bela/burra e (subliminarmente) feia/inteligente? É possível que tivessem sido mais justas e quiçá mais generosas com elas próprias em termos de sonhos, valorização pessoal e projeto de vida? Melhor dizendo, será que a Joana e a Josefina, caso viessem a elaborar, mesmo de modo incipiente, um projeto de vida, nele contemplariam de modo sistémico as dimensões existenciais, consideradas constituintes do projeto de vida de uma qualquer pessoa, tais como as inerentes ao relacionamento consigo próprias, amoroso, com a família, a profissão, com o outro e o diferente? Mas como poderiam fazê-lo sem uma (auto)valorização pessoal suficientemente holística? Uma valorização pessoal plena, alimentada pela energia emocional, psíquica e espiritual, que, para além de nos permitir sonhar, impulsiona para o poder de transformar os nossos sonhos em realidade vivida?
Na história da Joana e da Josefina, ambas tinham como objetivo de vida o que todos nós, conscientemente, dizemos ter e querer, ou seja, o objetivo de ser feliz, mas para isso tanto a Joana como a Josefina não conseguiram traçar os seus rumos, as suas metas, numa perspetiva global, enquanto seres inteiros, pois uma canalizou mais energia anímica para a dimensão académica/profissional e a outra para a dimensão familiar. Tanto uma como outra descuraram outras dimensões igualmente importantes, cuja lacuna pode ter comprometido, no caso da Joana, a qualidade de vida e, no caso da Josefina, o nível de vida.
E porque limitaram as suas dimensões existenciais? Talvez porque cada uma delas tenha investido na área que percebiam como validada social e familiarmente e por isso sentiam-se mais preparadas, mais confiantes, mais valorizadas enquanto pessoas. Mesmo assim, o gap existencial foi evidente. Mas como explicar o mencionado gap?
Bem, chegou a hora de explicitar a minha opção de, até agora, não ter ousado responder à questão sobre a «profecia autorrealizada». Lembram-se? Assim, vou agora procurar responder a este gap existencial, o que desde já reconheço ser algo desafiante, porque envolve explicar o óbvio, quando, inicialmente, cheguei a ter a pretensão de falar sobre valorização pessoal sem abordar temas óbvios, mas, como se pode verificar, parece não ter sido conseguido. Mas eis que bato à vossa porta, acompanhada da tão falada autoestima e dos seus respetivos pilares: a autoconfiança, o autorrespeito e a autoaceitação. Pilares obrigatoriamente transversais à valorização pessoal. No entanto, a autoestima representa um dos aspetos mais significantes para o sentimento de «mais-valia pessoal». A autoestima está integrada no que podemos chamar de PES/processo de empowerment do ser. Este processo funciona como um circuito em rede, constituído de vários elementos, sendo que os mais relevantes são: um bom nível de autoconhecimento, que por sua vez permite uma autoavaliação precisa, favorecendo uma atitude otimista perante a vida, que conduz à autoestima e à valorização pessoal, ou seja, à consciência de valor enquanto pessoa, que ajuda o ser a ter sonhos e a investir energia para os transformar em realidade e mesmo propor-se a elaborar e implementar o correspondente plano de ação.
Voltando à história das nossas três personagens – José, Joana e Josefina – mas agora no contexto das organizações, em especial para quem lidera equipas, quantas vezes – à semelhança do José, aquele pai cuidadoso e amoroso – costumamos definir as pessoas a priori, sem pensar nas eventuais consequências de tal atitude, que peca pelo não ter em conta o script existencial daqueles e daquelas que as circunstâncias da vida colocam sob a nossa responsabilidade? No âmbito da gestão de desempenho, até que ponto um feedback, ao invés de trabalhar em prol da valorização pessoal (e profissional) do colaborador, ajudando-o a investir emocionalmente, e não só, no seu plano de desenvolvimento individual, contribui para ocorrências ou agravamento de sofrimentos, colocando em causa o nosso papel de «fiel depositário» (por analogia jurídica) quanto à nossa responsabilidade com as pessoas que nos são confiadas? Não transformaremos, com frequência, as chefias em algozes e culpados pela baixa autoestima (baixa valorização pessoal) de pessoas que chegaram à empresa com a sua personalidade praticamente já estruturada? Também não queremos transformar os chefes em psicoterapeutas de traumas emocionais da sua equipa, muitos originados num passado por vezes longínquo. Não, não e não.
Então, o que pretendemos com esta história? Que ilações e lições podemos retirar deste «era uma vez» no que respeita ao processo de gestão do capital humano e à valorização pessoal?
Se observarmos a palavra valorização, verificamos que nela coexistem duas em uma, i.e., valor(iz)ação. Valor, no sentido de agregar valor, e ação, no sentido de «agir com conhecimento», já que a «competência é o conhecimento em ação» e ninguém é competente fora da ação informada. Podemos, por isso, inferir que «criar valor» depende do empreender através da ação (ou ações), ou seja, o agregar valor exige ação informada e atualizada.
Mas, em termos empresariais, que agentes devem ser envolvidos nesta valo- r(iz)ação? Quem deve empreender a ação? O colaborador ou o gestor/líder?
Acreditando na capacidade de o colaborador ser o protagonista da sua história, bem como na automotivação do mesmo para o seu aperfeiçoamento pessoal e profissional, e, por outro lado, confiando no empenho do gestor/líder, enquanto facilitador desse percurso, podemos afirmar que ambos são responsáveis em empreender ações que venham agregar valor tanto à pessoa-colaborador como à organização. É certamente «uma parceria prenhe de “corresponsabilidade empenhada”». Trata-se, pois, de uma questão de equilíbrio, numa perspetiva de conciliação/negociação de interesses, tendo em vista o alinhamento dos objetivos estratégicos globais da empresa e dos objetivos individuais do colaborador. Assim, cabe ao líder assumir a missão de ajudar a sua equipa a descobrir os seus recursos, valorizar os mesmos e, se fizerem sentido para o colaborador e para a empresa, agir em conformidade, defendendo e implementando políticas de recursos humanos que contemplem planos individuais de desenvolvimento pessoal e profissional para a sua equipa. Ainda quanto ao colaborador, é necessário que o mesmo queira, do fundo da sua alma, sair da «zona de conforto» (a sua zona de rotina, em regra) para assumir a sua parte de esforço/mudança/inovação no respetivo processo. Neste aspeto, a palavra-chave é querer, no sentido de ter vontade para… O que nos remete para a frase «sempre que há vontade há caminho».
Mas será assim? Será que basta ter vontade ou, para além da vontade, há que estar preparado? Ou será que, para além da vontade, do estar preparado, há que haver ação? Isto a propósito de que agregar valor exige que tanto o gestor como o colaborador adotem e invistam em medidas voltadas para o aperfeiçoamento de competências de caráter técnico, normativo/conceptual, comportamental e os tão valorados soft skills. Mas quando o nível de valorização pessoal se encontra fragilizado, como é possível empreender ações? Perante esta situação, fará sentido a implantação do PES/processo de empowerment do ser?
Retomando o nosso «era uma vez», todas as histórias têm um caráter ético subjacente e a do José e suas filhas Joana e Josefina não foge à regra. Mas o que pretendemos com este «era uma vez»? Qual a moral desta história? Creio que esta questão será sempre da responsabilidade de cada um, o qual também colherá os resultados decorrentes da «sua» decisão, a qual terá reflexos na prevenção de comportamentos e atitudes revelados pelas personagens, ou seja: quão importante é evitar a tendência para: Projetarmos, nos outros, os nossos desejos, quantas vezes de modo inconsciente, para atender às nossas conveniências? Alimentarmos, em nós mesmos, crenças limitadoras? Assumirmos os constrangimentos da vida como fatalidades do destino e por isso imutáveis? Desconhecermos os recursos e o potencial de desenvolvimento, tanto nossos como daqueles que temos por missão e dever de orientar?
Era uma vez… com final feliz
Podemos aproveitar este «era uma vez» para refletir sobre o teor de uma parte do discurso de iniciação do imortal inovador Steve Jobs, realizado em Stanford, em 2005, que a seguir transcrevo: «[…] O seu tempo é limitado, então não o desperdice vivendo a vida de outra pessoa. Não fique preso pelo dogma – que é viver pelos resultados do que outras pessoas pensam. Não deixe o ruído da opinião dos outros afogar a sua voz interior. E, o mais importante, tenha a coragem de seguir o seu coração e a sua intuição. Eles de alguma forma já sabem naquilo em que você realmente se quer tornar. Tudo o mais é secundário […]»
Estamos quase no fim deste «era uma vez», o qual cheguei a pensar que seria mais curto. Ocorre que é comum acontecer a quem conta histórias que uma coisa leva a outra… que leva a outra… e a outra e, por vezes, acabamos por perder de vista até as próprias personagens. Quando isto acontece, o contador, ou melhor, a contadora da história, corre atrás das mesmas, tal como uma mãe vai atrás dos seus filhos. E é isso que agora procuramos. Onde andarão o José, a Joana e a Josefina?
Para nosso júbilo, o bom das histórias que começam com «era uma vez» é que todas elas têm sempre um final feliz. E esta não podia ser diferente, pois, referindo Seligman (na sua teoria do florescimento), «Todo o mundo pode florescer» e, sendo ainda verdade a frase da canção Tocando em Frente, de Renato Teixeira e Almir Sater, quando cantam «cada um de nós compõe a sua história e cada ser, em si, carrega o dom de ser capaz de ser feliz», Joana encontrou um marido e já tem filhos, Josefina aproveitou os seus dotes culinários e vai muito bem no seu restaurante e o José, atualmente reformado, ajuda na educação dos netos e, claro, sente muito orgulho em apresentá-los aos amigos e comunidade de vizinhos.
“Cabe ao líder assumir a missão de ajudar a sua equipa a descobrir os seus recursos, valorizar os mesmos e, se fizerem sentido para o colaborador e para a empresa, agir em conformidade, […] implementando políticas de recursos humanos que contemplem planos individuais para a sua equipa”