Autor:
Gaspar Ferreira, Membro da Delegação Regional do Norte da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP)
A situação de pandemia Covid-19 está a afetar-nos a todos, colocando à prova a nossa capacidade de adaptação a um ambiente incerto e imprevisível.
Nesta fase de desconfinamento, somos desafiados a mostrar que aprendemos a lição e que somos capazes de voltar às nossas vidas, integrando novos hábitos de modo a continuarmos a proteger-nos da ameaça ainda presente do vírus.
De facto, esta crise constituiu-se como um teste à nossa resiliência, ou seja, a capacidade de um sistema/indivíduo absorver uma perturbação, sofrer uma mudança e manter essencialmente a mesma função, estrutura, identidade e retroações. Foi um desafio às nossas lideranças, ao seu conhecimento e capacidade de gestão de crises.
Outro teste igualmente importante, mas menos citado, prende-se com o conceito de histerese percetiva, que está relacionado com a persistência de um percepto, quando a mudança nos valores de um determinado parâmetro favorece já a deteção de um percepto alternativo (citado por Vieira, 2009). Tal como os materiais que após sofrerem uma deformação regressam ao seu estado anterior, o regresso aos nossos contextos de trabalho exigirá que usemos os comportamentos seguros que aprendemos no contexto de emergência, evitando um relaxamento excessivamente rápido, de modo a prevenir o regresso à situação anterior de crise sanitária. Não basta ser resiliente, temos também de ser capazes de regressar ao estado inicial no ritmo certo e devidamente afinados com as exigências do meio.
A gestão de recursos humanos precisa de estar, por isso, particularmente atenta, quer à pandemia, na sua dimensão de doença respiratória infetocontagiosa, quer ao evoluir do agravamento dos riscos psicossociais nas organizações (stress, burnout, ansiedade, problemas de sono, conflitos, assédio moral, dificuldades de conciliação da vida pessoal e familiar, consumo de álcool/drogas e outras dependências), procurando dar uma resposta imediata aos problemas e desafios que vão surgindo, e procurando prevenir e antecipar dificuldades que já se adivinham ou que diversos indicadores socioeconómicos começam já a anunciar.
- Elevado aumento da taxa de desemprego face ao período homólogo
Este indicador faz prever que se ampliarão as dificuldades económicas nos agregados familiares dos nossos trabalhadores, o que potenciará stress, conflitos, dificuldades de sono, episódios de violência e outros problemas sociais.
O desemprego poderá reduzir temporariamente o turnover em alguns setores. Índices de rotatividade elevados estão associados a políticas sociais deficientes ou a formas de organização do trabalho pouco estimulantes.
Fui contactado recentemente por uma empresa do norte de Portugal que pretendia que desenvolvesse um programa de resiliência para os seus trabalhadores. Reclamavam que os trabalhadores não tinham espírito de sacrifício e que desistiam do trabalho por falhas de caráter. Não negando os efeitos culturais e geracionais que podem estar subjacentes a uma menor resiliência em contextos industriais de talhe Taylorista, eram evidentes as necessidades de melhoria das competências de comunicação das chefias, a ausência de políticas de retenção de talentos e uma evidente falta de sensibilidade para a necessidade de fazer corresponder as atividades laborais às reais motivações dos colaboradores disponíveis na região. Não basta trabalhar competências de gestão do stress dos trabalhadores, é necessário introduzir medidas organizacionais.
- Um trabalhador em Portugal falta ao trabalho até 6,2 dias por ano devido a problemas de saúde psicológica (Fonte: OPP)
As baixas médicas continuam a aumentar – em 2019 foram registadas 1,8 milhões de baixas-, situação que já se vinha a agravar mesmo antes do surto pandémico.
A falta de prevenção da saúde psicológica nos locais de trabalho tem um custo imensurável. As faltas ao trabalho são um sintoma (stress, conflitos, presentismo, deficiente higiene do sono, consumos de substâncias) e um custo que deve ser transformado numa oportunidade para rever a forma como estamos a integrar e a acompanhar a saúde psicológica dos nossos colaboradores.
- Tempo médio de espera para uma consulta de saúde mental
Continuamos a assistir a dificuldades muito acentuadas do SNS para realizar consultas em tempo útil e com a qualidade desejada. Na fase anterior à pandemia já se observava uma grande discrepância entre o tempo necessário para uma primeira consulta de saúde mental e as consultas posteriores de acompanhamento dos utentes. Daqui decorre que identificada a necessidade de apoiar um colaborador o prazo de atendimento não é o mais adequado e a dependência do SNS pode agravar a situação. Muitas empresas encaminham os casos inicialmente para o SNS, recorrendo posteriormente a seguros privados.
- Consumo de ansiolíticos e antidepressivos durante o período de Covid-19
Distribuição do consumo por idade:
Portugal é o país europeu com maior consumo de ansiolíticos e antidepressivos, revelam os dados do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde (DGS).
Os tranquilizantes procuram tratar os sintomas provocados por uma perturbação de ansiedade ou depressão e aliviam o incómodo, mas não curam. O ciclo só se quebra identificando a causa ou a doença que está por detrás da ansiedade ou da depressão. Depois, é preciso tratar, habitualmente com antidepressivos, e só quando deixarem de existir sintomas é que se faz o desmame dos medicamentos.
Os casos de ansiedade têm surgido com frequência na linha de apoio psicológico criada pelo Governo e pela Ordem dos Psicólogos, que conta com 63 profissionais e tem capacidade para 700 chamadas por dia. Em casos mais urgentes, como doentes com histórico psiquiátrico ou em risco, a articulação com o INEM é imediata. Há também um sistema de monitorização 24h depois.
O recurso à Linha SNS24 (Tecla 4) permite um atendimento psicológico telefónico acessível à população em geral neste período de crise. A disponibilização de serviços de psicologia presenciais ou telefónicos aos trabalhadores é uma boa prática cuja tendência se deverá manter para além da pandemia.
Prevenção Primária: Avaliação de Riscos Psicossociais
As empresas têm hoje de conciliar objetivos económicos, sociais e de saúde de uma maneira absolutamente integrada. Importa, por isso, saber como se sentem os nossos colaboradores, como estão a lidar com as mudanças operadas nos seus contextos laborais, como estão a conciliar a sua vida profissional com a sua vida pessoal e familiar e como podemos definir políticas e medidas concretas protegendo os trabalhadores e mantendo a competitividade.
Para cumprir as orientações legais que visam a proteção da saúde psicológica dos colaboradores, as organizações devem recorrer periodicamente a ferramentas de avaliação psicológica adequadas aos contextos e aos estádios das organizações/equipas.
A Lei 102/2009, relativa ao Regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, no seu Capítulo II (Obrigações gerais do empregador e do trabalhador), Artigo 15.º, Nº. 1, determina que o “empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.”
No Nº.2 refere que o empregador “deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção: e) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais”.
No Nº. 8 refere ainda que o “empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho”, constituindo a violação destes preceitos uma contraordenação muito grave.
Este regime jurídico prevê ainda que o empregador “cuja conduta tiver contribuído para originar uma situação de perigo incorre em responsabilidade civil”, o que é uma sanção leve quando comparada com as de outros países a nível europeu, onde esta falta de acompanhamento pode mesmo gerar responsabilidade criminal.
As organizações estão, deste modo, obrigadas a proporcionar locais de trabalho saudáveis, sendo esta uma responsabilidade e um compromisso que vincula necessariamente todos os envolvidos – empregadores, direções, gestão de recursos humanos e colaboradores.
Esta avaliação regular dos riscos psicossociais pode ser realizada através de questionários, online ou em papel, que garantam a confidencialidade das respostas aos mesmos. Deve haver um consentimento informado para recolher esta informação.
Com efeito, a ACT – Autoridade das Condições de Trabalho tem vindo a recomendar que este processo seja conduzido por psicólogos, com ferramentas devidamente validadas – a Ordem dos Psicólogos disponibiliza aos seus membros uma plataforma online com todas as garantias de confidencialidade. Os resultados dos inquéritos, que podem ser complementados com momentos de focus-groups e entrevistas individuais, devem traduzir-se em medidas organizacionais. Deve ser elaborado um plano de ação que inclua as medidas a serem adotadas para eliminar ou controlar os riscos, deve estar identificado o responsável, deve ser determinado quando e como se irá intervir, e deve ser verificado se as medidas foram efetivamente adotadas.
A realização de questionários de avaliação de riscos psicossociais sem uma tradução real na vida das organizações pode revelar-se contraproducente. A avaliação deve resultar na identificação de medidas e na sua implementação. O acompanhamento dos colaboradores e o estudo do efeito das medidas pode e deve ser feito numa base diária. Pode, por exemplo, ser realizado com algumas perguntas no início ou fim do turno. Pode melhorar-se a comunicação e perceção do bem-estar individual e grupal com uma maior proximidade das lideranças e a realização de reuniões periódicas junto das equipas de trabalho e colaboradores.
O Impacto do Tecnostress e do teletrabalho
“Não estamos a utilizar o teletrabalho a favor da conciliação.” – Francisco Miranda Rodrigues, Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses
Como parte da resposta à pandemia Covid-19 muitos colaboradores de diferentes tipos de organizações começaram a trabalhar ou intensificaram o trabalho a partir de casa. Esta situação coloca desafios a todos: às organizações, aos colaboradores e às suas famílias. As fronteiras entre a vida profissional e pessoal/familiar, que contribuem para o nosso bem-estar e saúde psicológica, esbateram-se e criaram um conjunto de dificuldades.
Uma das classes profissionais que obteve mais visibilidade na transição para o teletrabalho terá sido a classe docente. Quem tem filhos em idade escolar pôde ter um vislumbre do trabalho que alunos e professores desenvolveram, sendo notório o esforço e sobrecarga de uns e outros. Todos tiveram de se ajustar a um meio que exigia competências técnicas específicas, e houve necessidade de adaptar com celeridade diversas infraestruturas básicas, desde o espaço em casa até à qualidade e disponibilidade da ligação à internet. O desafio foi semelhante noutros ambientes laborais, por todo o país.
“Social Loafing” e Prevenção do Estigma
Quando não existe um planeamento para o trabalho em grupo, acontece o que se chama de “social loafing”, em que determinados membros de um grupo exercem menos esforço do que fariam se trabalhassem sozinhos, escondendo-se atrás do esforço realizado pelos outros membros (Ringelman).
Neste sentido é necessário contrariar uma eventual preguiça social individual, evitando o relaxamento na prevenção do contágio por parte dos trabalhadores e prevenindo o facto de as pessoas tenderem a ocultar os sintomas, doença ou fatores de risco (viagens, contactos), e a não procurar aconselhamento junto de profissionais de saúde atempadamente. Os comportamentos recomendados, como a distância social ou o isolamento, podem ser mais desvalorizados ou mesmo utilizados no sentido de procurar encobrir essas situações.
Importa não estigmatizar os trabalhadores, seja por terem contraído o SARS-CoV-2, seja por estarem a passar por um período difícil da sua vida – dificuldades financeiras, divórcio, luto, alteração brusca de funções, reforma laboral – ou terem superado um quadro de depressão e burnout.
Recomendações finais
Urge atender às dificuldades imediatas que os trabalhadores apresentam, ao mesmo tempo que se impõe a necessidade de se preparar as organizações quer para (sobre)viver neste contexto volátil, quer para antecipar e prevenir crises idênticas.
Para a OIT – Organização Internacional do Trabalho, a chave para lidar com os perigos e riscos psicossociais no local de trabalho é a prevenção:
- Implementar medidas coletivas de avaliação e gestão de riscos psicossociais, tal como é feito com outros riscos no local de trabalho
- Adotar de medidas coletivas e individuais de prevenção e controlo de riscos psicossociais (linhas de apoio/ consultas psicológicas online)
- Aumentar as competências dos trabalhadores e respetivas lideranças para lidar com períodos de crise, promovendo o seu controlo sobre as suas tarefas (coaching psicológico/ formação em gestão do stress)
- Melhorar da liderança e da comunicação organizacional (líderes com formação em gestão de crise, comunicação atualizada suportada pela liderança de topo através de porta-vozes competentes na comunicação de risco e de crise, estabelecimento de protocolos de procedimento em situação de crise)
- Permitir a participação dos trabalhadores na tomada de decisões (reuniões frequentes/ auscultação na tomada de medidas em contexto de trabalho/ formação)
- Construir sistemas de apoio social para trabalhadores no local de trabalho (criar espaços/momentos para atividade física, relaxamento e convívio virtual ou presencial)
- Ter em conta a interação entre as condições de trabalho e de vida (formação de novas competências para o teletrabalho/riscos emergentes);
- Aumentar o valor atribuído à segurança e saúde psicológica dentro da organização (preparar/sustentar o desconfinamento e as respostas específicas de apoio coletivo e individual)
Em jeito de conclusão, citando o Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, “a prevenção dos riscos de saúde mental não pode ser vista como um custo pelas empresas. Não intervir e não prevenir, isso sim, é um custo. Profissionais esgotados, exaustos, com stresse, são profissionais que não contribuem para a competitividade das empresas e que não contribuirão para a recuperação económica do país nesta fase crítica.”
Artigo publicado na RHmagazine nº 129.