No dia mundial da saúde mental, o InfoRH publica uma reportagem publicada na edição 117 da RHmagazine acerca da síndrome de burnout, que afetava, em 2017, 17,2% da população ativa em Portugal.
Nasce um novo dia e a sensação de incapacidade apodera-se deles. As mudanças de humor repentinas e a irritabilidade começam a contaminar a sua relação com os outros. As dores de cabeça tornam-se frequentes e a desmotivação impede-os de se dedicarem aos projetos com ânimo. Os pedidos acumulam-se e a ansiedade cresce. À noite, desce sobre eles um cansaço extremo. As horas passam e as insónias perturbam o descanso. Estes são os primeiros sinais de alarme característicos de uma síndrome que, em 2017, afetava 17,2% dos trabalhadores portugueses. A síndrome de burnout “refere-se ao esgotamento físico e mental causado pelo excesso de trabalho ou pelo stress provocado pela atividade profissional” e caracteriza-se por “sentimentos de exaustão emocional, em que o indivíduo já não consegue dar mais de si, de despersonalização, evidenciada por sentimentos de vazio e de ausência de significado de si e dos outros, e de baixa realização pessoal, em que o sujeito sente uma profunda insatisfação”, afirma Maria Antónia Frasquilho, psiquiatra e diretora da clínica AlterStatus, à RHmagazine.
O burnout foi descrito, pela primeira vez, na década de 70 do século XX, pelo psicanalista norte-americano Herbert Freudenberger. O psicólogo David Pires Barreira explica, na revista “Fatores de Risco”, de julho/setembro de 2015, que, “nas descrições do autor, os trabalhadores que anteriormente se sentiam motivados e empenhados nas suas funções, passavam para uma perda gradual de energia e ficavam ao longo do tempo frustrados e exaustos”.
Ao burnout está associado o stress, que se pressupõe que seja prolongado no tempo, e os riscos psicossociais, decorrentes, segundo a Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, de “deficiências na conceção, organização e gestão do trabalho e de um contexto social de trabalho problemático”. Como sugere a designação, os riscos psicossociais incluem todos os fatores psicológicos ou sociais, “suscetíveis de interferirem com a saúde dos trabalhadores, condicionando o seu bem-estar físico, mental e social”, conforme refere Filipa Palha, psicóloga e presidente da Associação ENCONTRAR+SE.
Nas organizações, os profissionais estão sujeitos a cargas de trabalho excessivas, a exigências contraditórias, à falta de clareza na definição das funções e a uma má gestão das mudanças organizacionais. Assusta-os a insegurança laboral, foge-lhes o controlo sobre a organização e execução do seu trabalho e falta-lhes o apoio e reconhecimento das chefias e colegas.
O burnout e o stress em números
Os dados mais recentes da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional (APPSO), revelados à RHmagazine, indicam que 17,2% da população ativa em Portugal se encontrava em burnout em 2017 – valor que aumentou 3,5% em relação ao período compreendido entre 2008 e 2016. João Paulo Pereira, presidente da direção da APPSO, justifica o aumento aludindo à “maior sensibilidade para o diagnóstico e para as circunstâncias que o provocam”, à “redução do sentimento de realização pessoal e profissional” e às “dificuldades na perceção de recompensa e sentimento de comunidade, que estão aparentemente mais condicionados”. Ainda de acordo com o último barómetro desenvolvido pela APPSO, para além dos trabalhadores com quadro clínico de burnout diagnosticado em 2017, 48,9% da população ativa portuguesa encontrava-se em risco elevado de entrar em burnout, 33,9% em risco médio e 17,2% em risco baixo.
Em 2013, Portugal era o terceiro país, dos 31 países europeus que participaram no inquérito de opinião sobre segurança e saúde ocupacional da Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, com a percentagem mais elevada de trabalhadores que consideravam que a existência de casos de stress relacionado com a atividade profissional era muito comum (28%). Em primeiro lugar, encontrava-se o Chipre (51%), seguido da Grécia (46%) e da Eslovénia (28%), que partilhava com Portugal a terceira posição. Segundo o mesmo inquérito, as três causas mais comuns de stress são as horas ou o volume de trabalho (41%), a sua reorganização ou a insegurança vivida em contexto laboral (41%) e a falta de apoio para cumprir as tarefas (33%).
O burnout é um fenómeno alheio a geografias, hierarquias e profissões. Em todo o mundo, há trabalhadores de diferentes áreas de atividade que se apresentam em burnout. Não obstante, há profissões que se caracterizam por uma elevada prevalência, nomeadamente os profissionais de saúde, que se constituem como um grupo de maior risco. De acordo com o estudo nacional do burnout na classe médica, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, em 2016, a convite da Ordem dos Médicos, 66% desses profissionais apresentavam um nível elevado de exaustão emocional, 39% um nível elevado de despersonalização e 30% um elevado nível de diminuição da realização profissional. Um estudo coordenado pela Unidade de Investigação em Epidemiologia, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, divulgado em abril deste ano, concluiu que a síndrome de burnout afeta todos os profissionais que trabalham em hospitais, independentemente da função que desempenham.
Mas a síndrome de burnout afeta, também, “as forças policiais, pessoal administrativo, advogados, condutores de transportes públicos e professores”, escreve David Pires Barreira na revista “Fatores de Risco”. Recentemente, foram divulgados os resultados de um estudo desenvolvido por uma equipa de investigadores da Universidade Nova de Lisboa, em parceria com a Federação Nacional de Professores, que revelam que mais de 60% dos professores portugueses sofrem de exaustão emocional e 42,5% apresentam um baixo índice de realização
Quando o normal é, afinal, um sinal de alarme
A síndrome de burnout admite várias definições e caracteriza-se por uma sintomatologia variada. Há especialistas que consideram que o seu diagnóstico implica o cumprimento de um critério tripartido. “Só se pode dizer que existe, efetivamente, burnout quando há uma elevada exaustão, uma baixa realização e um elevado cinismo”, sublinha João Paulo Pereira, presidente da direção da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional.
O psicólogo e diretor da Clínica ISPA, Daniel Sousa, defende que “não há apenas um conjunto de critérios que tem de estar presente para que seja diagnosticada a síndrome de burnout”. “É preciso fazer um diagnóstico diferencial e que os técnicos de saúde mental, nomeadamente os psicólogos, tenham atenção aos fatores de comorbidade, porque há vários aspetos que estão relacionados”, alerta. No entanto, segundo o especialista, “o burnout está presente quando uma pessoa perceciona, no exercício da sua profissão, que as exigências que lhe são colocadas são muito superiores às suas competências, verificando-se uma manutenção no tempo”.
É na valorização dos sinais de alerta, ou sintomas, que poderá residir o sucesso de um diagnóstico atempado e correto. “Quando as pessoas procuram ajuda, procuram numa fase muito avançada do problema”, aponta Daniel Sousa, acrescentando que “começam a dormir mal, a irritar-se com mais facilidade, têm problemas em casa e no trabalho e têm insónias, mas não dão importância”.
Igual desconsideração têm os comportamentos diários de risco. “Há aspetos no dia-a-dia que reconhecemos como sendo de risco, mas que já nos fomos habituando a achar normais, como a exigência de uma disponibilidade total e a qualquer dia ou hora, muitas vezes associada a horas de trabalho que excedem em muito as desejáveis, implicando igualmente o ter de levar trabalho para casa, os telemóveis a receber continuamente mensagens e e-mails fora das horas de trabalho, o ter de ficar para além do horário, e mesmo quando já se terminou as tarefas, com medo do olhar dos colegas ou de ser julgado como mau colaborador”, explica Filipa Palha, psicóloga e presidente da Associação ENCONTRAR+SE.
A síndrome de burnout manifesta-se fisicamente através do cansaço, perturbações da memória, da concentração, do raciocínio, da agilidade, dores de cabeça, insónias, hipertensão e infeções repetidas. Mas os sintomas podem ser, também, comportamentais, refletindo-se em conflitos, na ausência do cumprimento de regulamentos, absentismo, desmotivação, indecisões, erros, baixa produtividade e eficácia, consumo de psicofármacos e substâncias tóxicas. Há, ainda, sintomas psicológicos, como a negatividade, sentimentos de desvalorização, tristeza e irritabilidade, ansiedade, depressão e isolamento.
“Está sempre presente um profundo sofrimento emocional”, realça a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho. É característica do burnout “uma escala progressiva de desadaptação, que vai desde uma inicial paixão desmesurada pelo trabalho com enorme vitalidade e entusiasmo, deixando para trás a vida pessoal e familiar, as necessidades vitais como uma boa alimentação e o dormir o suficiente, a uma série de sintomas de ansiedade e desilusão, finalizada num desencanto depressivo profundo, que pode mesmo acabar num suicídio”, esclarece.
A cegueira e surdez das organizações
A cada ano aumentam os índices de burnout, aumenta a prescrição e o consumo de antidepressivos, ansiolíticos e analgésicos. Os números são do conhecimento das organizações, que, segundo os especialistas, nada fazem. “Andamos, há cerca de dez anos, ciclicamente, a constatar dados. Historicamente vemos que o que se fez foi muito perto de nada. A pergunta é: porque é que não se intervém, se sabemos as implicações que o burnout tem, primeiramente, na saúde das pessoas e no seu bem-estar, as consequências económico-sociais que acarreta e a despesa que origina nas empresas pela falta de pessoas?”, questiona João Paulo Pereira, presidente da direção da APPSO, aproveitando para lançar mais uma pergunta: “porque é que sabendo nós que os países nórdicos, para aumentarem a produtividade, reduziram a jornada de trabalho, em Portugal se aumentou?”. Mas o psicólogo atreve-se a responder, dizendo que “as organizações têm de responder a alguns critérios para a sua sobrevivência” e que “os departamentos de recursos humanos continuam a ser muito sobrecarregados com questões administrativas e muito pouco com questões relacionadas com as pessoas”.
E é acerca da ausência de intervenção nas organizações que se erguem as vozes dos especialistas. Daniel Sousa, psicólogo e diretor da Clínica ISPA, concorda, chamando a atenção para o facto de o investimento nesta área significar ganho, “e ganho evidente, incluindo do ponto de vista financeiro”. Maria Antónia Frasquilho, psiquiatra e diretora da clínica AlterStatus, sublinha que “por cada euro investido em programas de prevenção dos riscos psicossociais há um retorno de 13 euros”. A síndrome de burnout tem no número três a trilogia dos critérios de diagnóstico e outra “fundamental”, relativa à “avaliação, prevenção e intervenção”. “Devíamos fazer em Portugal um diagnóstico rigoroso da situação. Só depois é que sabemos que estratégias seguir”, esclarece o psicólogo e diretor da Clínica ISPA, que defende, a montante da intervenção, a realização de uma avaliação periódica dos riscos psicossociais nas empresas.
A experiência como presidente da ENCONTRAR+SE permite a Filipa Palha afirmar que, “para além da avaliação dos riscos psicossociais prevista pela lei e de iniciativas ligadas à saúde física que já se desenvolvem em diferentes contextos, torna-se fundamental quebrar o silêncio em torno das questões da saúde e doença mental”. “Apesar de uma em cada cinco pessoas no local de trabalho sofrer de algum problema de saúde mental, a verdade é que o estigma associado a estas doenças ainda é o maior obstáculo à promoção da saúde mental”. A psiquiatra e diretora da clínica AlterStatus, Maria Antónia Frasquilho, acrescenta que “negar os problemas, a teimosia em resolver sozinho, a vergonha em procurar ajuda ou a falta de humildade para aceitar o aconselhamento de terceiros podem ser a diferença entre uma solução rápida sem mácula e um retorno à vida ativa com cicatrizes para sempre”.
A tríade da síndrome de burnout: avaliar, prevenir e intervir
É habitual ouvir-se dizer que a união faz a força e a julgar pela opinião dos especialistas, no que à síndrome de burnout diz respeito, confirma-se, já que acreditam que uma ação multidisciplinar entre as diversas áreas de uma organização é a solução mais adequada. “Há que agir numa aliança entre o departamento de higiene e segurança no trabalho, medicina do trabalho e recursos humanos”, afirma a psiquiatra e diretora da clínica AlterStatus, Maria Antónia Frasquilho. Também o presidente da direção da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, João Paulo Pereira, refere que os “departamentos de saúde e segurança no trabalho, de recursos humanos e formação assumem uma extrema importância”. O especialista aconselha as empresas a trocarem o termo eficácia pelo termo eficiência, a avaliarem os seus colaboradores não só quantitativamente, mas também qualitativamente e defende a aposta na formação dos “atores principais”, os “responsáveis pelas organizações e pela mudança”, porque os procedimentos devem ser top down. “A prevenção dos riscos psicossociais pode passar a ocupar horas de formação”, realça João Paulo Pereira, acrescentando que “a intervenção poderá incluir processos de coaching organizacional, processos de gestão de carreiras e acompanhamento psicológico ou psicoterapia”.
O psicólogo David Pires Barreira considera que existem três níveis de estratégias de intervenção: organizacional, individual e interpessoal. Às organizações cabes-lhe “potenciar a comunicação vertical (ascendente e descendente), reestruturar ou redefinir postos de trabalho, estabelecer de forma precisa sistemas de papéis, instaurar um sistema de recompensas justo, delimitar os estilos de liderança, formar quadros intermédios e de direção e desenvolver programas de prevenção de riscos psicossociais”. A nível individual, o profissional pode começar por “modificar a sua relação com os stressores, encontrar técnicas de gestão de tempo, traçar objetivos realistas e exequíveis, treinar a resolução de problemas, usar estratégias de assertividade e técnicas de relaxamento”. Pode, ainda, “fomentar as relações interpessoais e fortalecer os vínculos sociais entre os elementos do grupo de trabalho”.