Autor: Mário Ceitil, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas, Formador, Docente Universitário e Membro do Conselho Nacional dos Psicólogos
Num filme que passa recentemente no grande ecrã (ou já passou, dependendo do dia em que este artigo for publicado) 1, há um diálogo entre duas personagens, em que uma mulher pergunta ao marido, e cito livremente de memória, “estás comigo porque escolheste ou apenas porque precisas de mim”? Na sequência do argumento, que não interessa para o caso e que não desenvolvo para não me tornar “spoiler” de possíveis futuros espectadores, esta pergunta adquire uma maior expressividade quando uma dessas personagens afirma, de modo eloquente, que “a escolha é mais importante do que a necessidade”, suscitando assim uma importante questão sobre a natureza diferencial e a respetiva intensidade dos vínculos que sustentam as interações e os relacionamentos humanos.
Escolher ou sentir necessidade são duas poderosas forças que impelem as pessoas a agir em determinados sentidos e com determinada intencionalidade, razão pela qual se encontram sempre na base das motivações humanas e, consequentemente, dos tipos de compromisso que as pessoas estabelecem com os diferentes interlocutores e contextos onde atuam.
No entanto, se bem que ambas suscitem ações orientadas para finalidades sentidas como tendo valência positiva, as duas forças exprimem-se de formas muito diferentes e com impactos muito distintos, tanto nos comportamentos individuais, como nos tipos de vínculo que cada pessoa estabelece com o seu ecossistema.
A necessidade é involuntária, telúrica, expressa-se de uma forma mais ou menos imperativa, de acordo com a sua natureza e pode ser consciente ou inconsciente na pessoa que a sente. Quando se manifesta, o que acontece sob múltiplas formas, gera em quem a experimenta um sentimento incómodo (no mínimo) de carência que leva a pessoa a mobilizar-se para a concretização de ações que supostamente podem conduzir à sua satisfação.
Esta mobilização pode ser intencional e bem direcionada, quando a pessoa tem consciência da necessidade, mas pode também ser não intencional, errática e difusa, quando a necessidade não se manifesta de forma consciente. Em qualquer dos casos, a procura da satisfação de uma necessidade é sempre um processo primário, tornando a pessoa muito dependente da fonte para a sua concretização.
A escolha, ao contrário da necessidade, é um processo que envolve uma decisão consciente e direcionada para uma finalidade estratégica, clara e bem fundamentada.
Na necessidade, a pessoa, no essencial, cede a impulsos; na escolha é a pessoa que gera os seus próprios impulsos.
Por isso, se o dinamismo próprio da necessidade pode, de facto, suscitar dependência, a escolha, pelo contrário, estimula e favorece a responsabilidade e a autonomia.
Nos contextos da vida profissional, as diferenças assinaladas têm uma expressão muito prática na forma como cada colaborador encara o trabalho e na natureza do vínculo que o liga à sua empresa ou organização. Em concreto, e transpondo para aqui a citação que fiz no início do texto, é obvio que a atitude daqueles que trabalham porque “escolhem” trabalhar, é completamente diferente da atitude dos que trabalham apenas porque “têm necessidade” de trabalhar.
Os primeiros, têm uma atitude proativa e encaram a sua carreira profissional como uma parte essencial da sua vida como pessoas, procurando, muito mais do que um simples “work/life balance”, uma verdadeira “work/life integration”, onde esses dois universos, o “work” e a “life”, são perspetivados numa linha de continuidade, complementaridade e verdadeira integração e não apenas como realidades paralelas, cuja interseção se procura “equilibrar” através do cumprimento de uma aritmética equívoca de “orçamentos tempo”.
Os segundos, que pertencem à categoria dos que trabalham apenas por necessidade, têm naturalmente um vínculo muito mais superficial e muito dependente da natureza dos estímulos e recompensas que a entidade onde trabalham lhes dá (ou não dá)”. Como não concebem o campo de desenvolvimento da empresa/organização como parte integrante do seu campo de desenvolvimento como pessoas, os compromissos que estabelecem não vão, tendencialmente, muito mais além do que apenas “fazer aquilo a que são obrigados”.
Esses colaboradores, muito embora possam ser diligentes na execução das tarefas inerentes às suas funções, raramente aspiram a tornarem-se “high performers”, limitando-se a querer ser apenas “suficientemente bons para não serem despedidos”.
Neste contexto, e num tempo em que uma das principais preocupações das empresas e das organizações em geral é a captação e retenção de talentos, faz todo o sentido dinamizar estratégias de gestão, em particular de Gestão das Pessoas, que visem justamente promove um maior “engagement” e um mais consciente e sustentado “commitment” , que só é possível de concretizar quando os colaboradores estabelecem vínculos, às suas organizações, com base em escolhas intencionais e claramente alinhadas com o seu próprio propósito de vida.
No entanto, é importante assinalar que nem sempre a ausência de vínculos por escolha é da exclusiva responsabilidade dos colaboradores e apenas dependente do seu livre-arbítrio pessoal.
Na verdade, em muitas empresas e organizações ainda subsistem tipos de estrutura e práticas de liderança, muitas vezes acompanhadas por atitudes de prepotência e/ou de agressividade, que obviamente nem estimulam a autonomia nem promovem o desenvolvimento dos colaboradores como “pessoas totais” e têm apenas como consequência a redução do seu potencial e a erosão progressiva do ânimo e da esperança.
Nas circunstâncias e situações em que isto acontece, não será possível (ou, pelo menos, será muito mais difícil) os colaboradores gerarem vínculos por escolha, porque a sua vida profissional passa a estar completamente dominada por necessidades mais primárias de autodefesa, de sobrevivência na organização e de resguardo de um mínimo de dignidade pessoal.
Pelo que ficou escrito, é pertinente sustentar que, nos vínculos que as pessoas estabelecem relativamente às suas organizações e também em muitas outras situações da vida, a escolha é de facto mais importante do que a necessidade, porque só quando a pessoa é capaz de se libertar dos laços de ansiedade que a prendem à sobredeterminação da necessidade, se torna realmente capaz de fazer escolhas estrategicamente alinhadas com os seus propósitos de vida.
Só na escolha é que cada um se conecta profundamente consigo próprio; e só pela escolha o ser humano se torna realmente livre.
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