Autor: Mário Ceitil, Formador, Docente Universitário e Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas
U
ma das premissas da Psicologia Social e das Organizações que me habituei a considerar como…habitual é a de que “o conflito é a dimensão permanentemente atualizada das organizações”. Apesar de a podermos dar como garantida, como acontece com qualquer outra premissa, é facto que ela tem vindo a ser suportada ao longo do tempo por incontáveis projetos de investigação que têm justamente como foco estudar a problemática do conflito, tanto ao nível da psicologia das relações interpessoais como na vertente mais psicossociológica das relações intra e inter grupos. Os resultados destes estudos têm constituído uma riquíssima contribuição não só para a compreensão do fenómeno em si e para as múltiplas e variadas aplicações práticas à gestão das pessoas nas organizações, como deram um decisivo contributo para desmistificar e, de certo modo, naturalizar um tema que, para muitos, ainda é considerado apenas na sua dimensão mais restritiva de “coisa má” que deve ser sempre combatida ou, pelo menos, evitada.
Ora, se partirmos da premissa anteriormente enunciada, a questão que se pode colocar é: Como será possível combater ou evitar uma coisa que é, em si mesma, inevitável?
Se a pergunta assim colocada pode parecer um pouco capciosa, sugiro ao leitor que pense na sua vida (não, não é um laborioso e profundo exercício de introspeção que proponho) e verifique se e quando conseguiu “virar a página” e passar a viver sem conflitos, em si, à sua volta e, mais crítico ainda, “com” a sua volta.
Para aqueles que conseguirem dar uma resposta afirmativa, mas também concreta e objetiva a esta questão, direi que fazem parte de uma restrita minoria de iluminados que conseguiram finalmente alcançar a serenidade alquímica do “princípio da sabedoria”; mas para os outros, que acredito constituírem a grande maioria, a realidade é passarem muito do seu tempo a lidar com situações de tensão e conflito, mais ou menos graves, que, pela frequência com que ocorrem, acabam por se tornar num elemento muito constante da paisagem do quotidiano de cada um, apesar do eventual desgaste que provocam.
Retomemos a ideia inicial: o conflito existe, sempre existiu, ocupa tempo…e está para durar.
No que diz respeito aos conflitos em contexto organizacional, um survey realizado em 2021 e referenciado num artigo da Harvard Business Revue (March/April 2022), indicava que oitenta por cento de uma amostra de 486 respondentes americanos, oriundos de um leque vasto e diversificado de empresas e de indústrias, referiam que gastavam uma média de 3,5 horas semanais a lidar com conflitos, que classificavam como uma “inescapable part of work life for employees at all levels”. Se fizermos umas contas “por alto” a partir deste rácio, teremos qualquer coisa como cerca de 24 dias úteis de trabalho por ano (calculados a 7/h dia) gastos diretamente a lidar com conflitos, o que é, em si mesmo, uma evidência inequívoca da importância desta problemática na vida das empresas e do seu peso na produtividade e nos resultados alcançados.
80% de uma amostra de 486 respondentes americanos, oriundos de um leque vasto e diversificado de empresas e de indústrias, referiam que gastavam uma média de 3,5 horas semanais a lidar com conflitos
Para além da fria objetividade dos números, a importância deste assunto para a vida das empresas e organizações está também bem patente no rico e variado leque de práticas formativas nesta área, realizadas justamente com a finalidade de apetrechar os quadros e colaboradores em geral com competências específicas de “Resolução de Conflitos”, “Resolução de Problemas Complexos” e/ou “Técnicas de Negociação” – todas elas centradas numa mesma preocupação: transformar situações e conflitos potencialmente destrutivos em novas oportunidades de interações produtivas.
Mas a transposição para a prática destas competências enfrenta algumas dificuldades que, na sua maioria, decorrem daquilo que eufemisticamente designamos por “natureza humana”.
Na verdade, os conflitos não ocorrem apenas por existirem diferendos de ideias ou de perspetivas sobre determinados assuntos; quando surgem, são muito mais motivados por uma excessiva personalização desses diferendos e pela contaminação emocional que resulta da tendência, muito humana, de considerarmos que “aqueles que não estão connosco, estão contra nós”. E pensar que alguém está contra nós é meio caminho andado para o despoletar de mecanismos de defesa que se manifestam rapidamente sob a forma de ataque, transformando um simples diferendo num jogo de forças dominado por paradigmas de “ganhar-perder”.
Os conflitos não ocorrem apenas por existirem diferendos de ideias ou de perspetivas sobre determinados assuntos; (…) são muito mais motivados (…) pela contaminação emocional que resulta da tendência, muito humana, de considerarmos que “aqueles que não estão connosco, estão contra nós”
Para além disso, a impaciência e o nervosismo que muitas pessoas sentem quando estão perante alguém que pensa e age de forma diferente da sua podem ainda ser explicados, de acordo com alguns neurocientistas, pela necessidade que cada pessoa tem de reduzir a incerteza, concretamente através da possibilidade de previsão em relação ao que lhe vai acontecer no futuro.
Assim, quando alguém é semelhante a nós, “o nosso cérebro consegue mais facilmente predizer aquilo que os outros pensarão, sentirão e farão” (Barrett, 2022). Inversamente, e porque “é metabolicamente dispendioso para um cérebro lidar com coisas que são difíceis de predizer, quando as pessoas nos são menos familiares poderá ser mais difícil sentir empatia por elas e predizer aquilo que vão fazer a seguir” (id).
Como a impossibilidade de previsão faz aumentar a ansiedade, este processo poderá explicar, pelo menos em parte, a razão que nos leva a reagir mal àquilo que é (ou sentimos ser) diferente de nós.
É, por isso, facilmente compreensível que, nas realidades organizacionais em que hoje vivemos, onde a diversidade nos entra “pela casa dentro” a cada momento, um dos grandes desafios das lideranças seja precisamente o desenvolvimento da capacidade de integrar equipas e colaboradores diferentes e fazer uma síntese sinergética de contrários, de modo que o todo se possa tornar superior ao mero somatório das diferentes partes.
E ainda que a relação com a diferença possa gerar resistências várias e até suscitar, à partida, alguma agressividade defensiva, como vimos atrás, é sempre pela capacidade de transformar ameaças de conflitos em novas e mais ricas oportunidades de aprender com os que nos são diferentes que conseguiremos elevar a nossa experiência humana a novos patamares de menor imperfeição.
A alternativa contrária é a cristalização das coisas que achamos como certas, é a redução da experiência da vida a uma mera reprodução de esquemas já conhecidos e é, no limite, em vez de evocarmos e celebrarmos o melhor de nós que ainda pode vir a ser, condenarmo-nos ao empobrecimento da nossa energia vital através da revisitação dogmática de tudo aquilo que já aconteceu.
E a pobreza, qualquer que seja a sua face, é sempre, como assinala Barrett (op.cit) “um colossal desperdício de oportunidade humana”.
REFERÊNCIAS
- Harvard Business Revue, March-April 2022
- BARRETT, L.F. (2022). 7 Lições e Meia sobre o Cérebro. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores
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