Autor: Mário Ceitil, Docente Universitário e Presidente da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas
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osto de acreditar que acredito que o valor intrínseco de uma pessoa não está na sua “personalidade”, mas nas escolhas que faz ao longo da vida.
Dito, ou melhor, escrito assim, esta asserção pode não passar de uma pura crença, naturalmente subjetiva e relativa, como o são todas as crenças. No entanto, ela tem uma forte colagem com a observação empírica da realidade, onde encontramos variadíssimas situações em que pessoas com personalidades, digamos, “problemáticas”, viveram vidas e carreiras de sucesso, mas também o seu inverso, ou seja, pessoas com personalidades, ditas, mais “saudáveis” e que, apesar disso, construíram biografias repletas de desaires e de fracassos.
Para além destas meras “aferições subjetivas”, esta suposta crença é também reforçada pela investigação científica ligada a vários modelos e teorias em psicologia e comportamento organizacional. Nestas últimas, têm particular destaque a Psicologia Cognitiva e os modelos baseados na Perspetiva Construtivista que, ao contrário de outras conceções mais clássicas que viam a personalidade como um conjunto de traços, mais ou menos inalteráveis, que determinavam o rumo das nossas vidas, propõem uma conceção diferente, segundo a qual “o elemento-chave da personalidade é a teoria pessoal que cada um de nós vai construindo ao longo da vida”. (*)
Se, de acordo com essas perspetivas mais clássicas, a personalidade dependia, em larga medida, da genética, e como a genética é algo que não se pode mudar, seria fácil concluir que a história de vida de cada pessoa já estaria, de certo modo, inscrita no seu código genético, reservando-se assim um espaço bastante limitado para a mudança e diversificação da experiência humana. Assim, a própria ideia do destino deixava de estar alcandorada numa difusa opacidade mística para se tornar algo supostamente mais palpável e concreto, porque alegadamente inspirada numa equívoca (e inquietante) auréola de cientificidade.
Em contraste com esta visão fatalista, os modelos construtivistas acentuam que o destino de cada um não é algo que nos seja simplesmente “dado”, mas um percurso permanente e contínuo que cada pessoa vive ao longo da sua história de vida, baseado num “processo central e unitário que é a construção do significado que damos à nossa experiência da realidade”. (*) Dito de outro modo, a nossa vida não é necessariamente determinada pela nossa personalidade, mas sim por aquilo que nós conseguimos fazer com a personalidade que temos; por sua vez, aquilo que nós conseguimos fazer depende sobretudo e acima de tudo, dos paradigmas e modelos mentais através dos quais nós interagimos com a realidade.
Dito isto, compreende-se a importância e o relevo atribuídos hoje aos modelos cognitivistas e construtivistas nas práticas de gestão empresarial e, sobretudo na Gestão das Pessoas, num contexto onde cada vez mais se valorizam os processos que têm como foco prioritário suscitar a “accountability” dos “stakeholders” de modo que assumam um efetivo protagonismo em “evocar o melhor que existe em cada um”. Para tal, é realmente determinante que cada pessoa consiga dotar-se de um “mindset” que lhe permita ver o futuro, não como uma mera decorrência do que aconteceu no passado, mas como um horizonte de oportunidades ainda por explorar.
É justamente com base nesta premissa que se sustentam práticas de intervenção que visam a criação de ambientes que possam favorecer e até facilitar que as pessoas “construam” uma conceção não determinista da realidade, a partir da qual se consigam libertar de algumas “amarras” cognitivas que lhes limitam a possibilidade de mudança. Estas intervenções serão tanto mais eficazes quanto mais cada pessoa se assumir como “sujeito” da sua própria mudança e não como mero “objeto” das arquiteturas metodológicas dos interventores, sejam eles líderes, consultores, formadores, coaches ou qualquer outro tipo de agente externo.
Entenda-se: não se trata aqui obviamente de desqualificar a ação do agente externo, mas sim de construir um modelo de intervenção no qual cada participante se sinta incitado a passar do papel de mero “espectador” para o papel, mais proativo e transformacional, de “protagonista” das mudanças.
Nesta ressignificação de papéis, o fator mais determinante não é realmente a personalidade de cada pessoa, mas sobretudo as suas crenças, os seus princípios e os seus valores, enfim a maneira como se vê a si própria, vê o mundo e interpreta o seu lugar e papel nesse mundo.
Se assim não fosse, seria então mais lógico e até mais produtivo que cada pessoa realizasse um teste psicológico prévio à intervenção, para ver se os seus traços de personalidade eram ou não “compatíveis” com os objetivos a alcançar. Esta prática, que é de facto usada nos recrutamentos com uma validade preditiva apreciável, embora não total, seria seguramente algo de inaceitável no que diz respeito a intervenções do tipo formação, ou mesmo em coaching. Embora nestes domínios seja frequente utilizarem-se questionários, não testes, que visam certos aspetos do comportamento, os resultados obtidos servem apenas como elementos indicativos para que cada sujeito da intervenção possa melhor refletir sobre esses mesmos aspetos e identificar prioridades ou áreas preferenciais de melhoria.
Assim, se o objetivo em presença for o de promover a mudança nas atitudes e comportamentos e elevar as pessoas a um superior patamar de performance, seja a nível profissional, seja a nível pessoal, o que realmente importa não é ter o tipo de personalidade X ou Y, mas o significado e relevância que cada pessoa aceita atribuir aos contributos que quer dar nos contextos em que atua.
E se a personalidade é um dado a ter em conta em qualquer domínio que se ocupe do “fenómeno humano”, não pode, todavia, constituir um “alibi honroso” para aqueles que pretendam branquear as suas dificuldades de mudança, através da invocação de determinismos reativos do tipo “já nasci assim”, “sempre se fez assim” ou outros quejandos.
Nas organizações, como na sociedade em geral, o que é importante é haver pessoas que, embora se consigam conectar com o seu “inner self”, não claudiquem sob o peso de uma historicidade pessoal que, embora os defina, não os determina.
Porque o principal desígnio do ser humano não é simplesmente limitar-nos a ser aquilo que somos: é evoluir daquilo que somos para um ser maior.
(*) VIAPLANA, G.f,i. (2019). PERSONALIDADE – Significados Pessoais e Sentido de Identidade. Espanha: EMSE EDAPP,S.L.