Autor: Mário Ceitil, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas, Formador, Docente Universitário e Membro do Conselho Nacional dos Psicólogos
Os desenvolvimentos tecnológicos, particularmente nos domínios da digitalização, da robotização e da inteligência artificial, têm vindo a tornar possível avanços muito significativos na melhoria das condições de trabalho de muitos milhões de pessoas em todo o mundo, possibilitando um maior equilíbrio entre os requisitos específicos das funções e a flexibilidade pessoal dos colaboradores.
Para além deste aspeto, já de si de extrema importância para quem trabalha, os progressos tecnológicos já permitiram realizar, infelizmente ainda não à escala global, uma conquista de enorme relevância e de grande significado para a evolução das sociedades: pela primeira vez na História da Humanidade, estamos perante a possibilidade real de que os trabalhos mais árduos, mais desgastantes e, naturalmente, menos motivadores, possam ser realizados sem ser através da “exploração do homem pelo homem”.
Apesar de esta última frase ser já considerada um chavão, julgo que, neste caso, ela contém uma muito concreta substância e um muito real significado.
De facto, todos nós temos consciência de que, ao longo da História conhecida, muitos daqueles trabalhos que “têm de ser feitos, mas que ninguém gosta de fazer” foram realizados à custa, seja de trabalho escravo, seja de outras modalidades de uma espécie de “escravatura light” que, embora aparentemente menos atentatórias contra as liberdades e direitos das pessoas, acabaram por redundar em formas mais ou menos encapotadas de negação ou, no mínimo, de limitação da dignidade humana.
Mas hoje, nas primeiras décadas do século XXI, assistimos, nas sociedades e nas organizações, a uma enorme expansão de filosofias e modelos que colocam a pessoa no centro das preocupações, dinamizando práticas de gestão que visam desenvolver o pleno potencial das pessoas, através da geração de ambientes de grande liberdade e flexibilidade, da promoção de uma maior autonomia e envolvimento dos colaboradores e da criação, de facto, de condições favoráveis para que as pessoas possam encontrar, no trabalho, uma forma digna, desafiante e motivadora de consolidação da sua identidade enquanto cidadãos e da construção de plataformas realistas para alcançar a sua felicidade enquanto pessoas.
Embora esta mudança não seja devida a uma só razão, é facto que só se torna hoje possível porque a tecnologia nos coloca à disposição poderosas ferramentas que permitem aos seres humanos irem-se libertando das tais tarefas que, seja pela sua própria natureza, seja pelas muito precárias condições em que são exercidas, não só são inequivocamente desmotivadoras, como limitam grosseiramente a expressão da inteligência humana.
É assim que, graças a esse desenvolvimento tecnológico temos hoje esta magnífica possibilidade de “encarregar” as máquinas de fazer os trabalhos mais “hard”, libertando os humanos para atividades em que a inteligência e a criatividade humanas sejam os elementos preponderantes. E podemos finalmente fazê-lo sem recorrer a segregações de qualquer espécie ou a práticas que vão contra os mais elementares princípios da moral. Afinal, como os robôs nem são dotados de consciência nem possuem a faculdade de sofrer, podemos colocá-los “facilmente” a desempenhar essas funções, sem pruridos de consciência nem dilemas éticos.
Levámos séculos, milénios, para aqui chegar; mas estamos a criar estímulos poderosos para por aqui podermos continuar.
A realidade é, todavia, complexa e a uniformidade em larga escala nunca foi um atributo específico da espécie humana. Por isso, e quando se pergunta se vamos conseguir todos juntos “surfar” estas mesmas ondas do progresso, sem ninguém ficar para trás, a resposta é, inevitável, mas infelizmente, não.
Quando se pergunta se vamos conseguir todos juntos “surfar” estas mesmas ondas do progresso, sem ninguém ficar para trás, a resposta é, inevitável, mas infelizmente, não
Na verdade, não há uma única evidência histórica de que grandes mudanças sociais em larga escala tenham sido secundadas por toda a gente e ao mesmo tempo. O que acontece habitualmente é que há pessoas, grupos e instituições que, por terem maior capacidade de visão e espírito empreendedor, conseguem constituir-se como “figuras de transição”, contribuindo, pelo seu exemplo, para criar um efeito multiplicador que se expande por comunidades cada vez mais alargadas.
E é justamente isso que está atualmente a acontecer com milhares de empresas e líderes que, pela sua coragem, e determinação, pela sua resiliência, mas também pelo seu muito realista “business acumen”, têm sabido demonstrar que é pela utilização inteligente e com propósito da tecnologia e pela aposta nas pessoas, pelo respeito integral pela sua dignidade e pela preocupação intransigente com o seu bem-estar, que as organizações conseguem gerar riqueza consolidada e desenvolvimento sustentado.
Mas como a realidade é “não linear” e, muitas vezes, “incompreensível”, choca-nos a consciência depararmo-nos ainda com situações aberrantes de trabalho, que configuram um flagrante desrespeito pelos direitos mais elementares do ser humano, como o que está a acontecer, por exemplo, no Alentejo, onde, de acordo com as notícias que circulam pelos vários órgãos de comunicação social, populações de imigrantes, a trabalhar em explorações agrícolas, estão a sofrer um tratamento aviltante e escandaloso por parte dos “patrões” e seus intermediários, que nos traz à memória os tempos mais obscuros do trabalho escravo.
Como é possível!? Como é possível que tal fenómeno esteja a acontecer, hoje, em Portugal, de forma repetida e continuada!?
Dir-se-á que é um fenómeno localizado e que só abrange um reduzido número de pessoas, como se a frieza dos números pudesse suavizar a brutalidade chocante dos factos.
Mas, no contexto atual, onde se expande esse movimento incessante para a conquista de uma maior dignidade humana no trabalho, que percorre grande parte do chamado “mundo civilizado”, situações deste tipo, ainda que ocorram em escalas mais reduzidas, não podem ser toleráveis, esquecidas ou escamoteadas.
A uma escala menos grave, mas igualmente preocupante, subsiste ainda, em muitas empresas e organizações, um largo esteio de sofrimento real vivido por muitos colaboradores que se sentem submetidos a formas de tratamento prepotente e arbitrário, mas que, todavia, o escondem, seja por vergonha, por medo, ou simplesmente por terem claudicado sob o peso da desilusão.
Subsiste ainda, em muitas empresas e organizações, um largo esteio de sofrimento real vivido por muitos colaboradores que se sentem submetidos a formas de tratamento prepotente e arbitrário, mas que, todavia, o escondem
De facto, ainda há muitos gestores e líderes que, trabalhando em organizações consideradas credíveis e com um “brand” apelativo, vão colecionando práticas de tratamento dos colaboradores que já não esperávamos encontrar nos dias de hoje: líderes que, pela mediação dos seus egos desmedidos, ainda pensam realmente que a principal missão de um “chefe” é mandar e, a dos “chefiados”, pura e simplesmente, obedecer.
Mas a própria dinâmica da evolução que, apesar dos altos e baixos, tem tido sempre uma linha ascendente de percurso, e o crescente conhecimento e consciência cívica das populações de profissionais, encarregar-se-ão de desalojar tais pessoas dos “postos de comando”, dando lugar a líderes que, através do seu estilo “Multiplicador”, expandam a inteligência nas suas equipas e nas suas organizações, fazendo com que as organizações se tornem verdadeiras comunidades de interesses partilhados e o trabalho seja cada vez mais uma fonte digna de progresso humano.
Por isso, finalizo este texto, com um conhecido poema de João Apolinário que contém uma sugestiva mensagem de renovação da esperança. E como esta será a última crónica que publico este ano, neste local, aqui o deixo também acompanhado com os votos de Feliz Natal para todos os possíveis leitores:
“É preciso avisar toda a gente/ Dar notícia, informar, prevenir/Que, por cada flor estrangulada/Há milhões de sementes a florir”.
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