A RHmagazine esteve à conversa com o Tenente-Coronel Fernando Maçana, sobre o processo de Lições Aprendidas e modelos implementados no Exército a nível de liderança, que poderão servir de exemplo às organizações.
Esta entrevista foi publicada na edição n.º 133 da RHmagazine, referente aos meses de março/abril de 2021.
O Exército participou na Conferência Agile Human Factors em 2020 com uma apresentação dedicada ao processo das Lições Aprendidas. Que lições retiraram do contacto do mundo civil e que são úteis para o Exército?
Em termos gerais, há muitos aspetos em que o Exército pode aprender com a sociedade civil e vice-versa, nomeadamente no que diz respeito aos recursos humanos, pelo que a área dos “Human Factors” reveste-se sempre de especial interesse para o Exército. Com a implementação em 2012 de uma capacidade de Lições Aprendidas, o Exército assume-se como uma organização aprendente, tendo, por isso, uma clara noção de que só com a partilha de experiências e conhecimento é possível, de facto, efetuar uma aprendizagem que conduza a uma melhoria significativa na utilização das técnicas e procedimentos em vigor. Fruto desta consciência institucional, o Exército tornou-se, e tem-se vindo a tornar, cada vez mais aberto e participativo, pelo que a presença em atividades como o evento do AHF de 2020 são parte integrante da sua rotina de partilha e aquisição de conhecimento.
As Lições Aprendidas têm divulgação a nível das organizações civis? Quais os benefícios que antecipam que as organizações civis recolheriam do modelo de debriefing que vocês utilizam?
Existem de facto muitos exemplos de organizações que aplicam sistemas de Lições Aprendidas com grande eficácia, como é o exemplo da aviação comercial. Se hoje em dia beneficiamos da segurança que existe no transporte aéreo, tal deve-se, em grande parte, a um excelente modelo de Lições Aprendidas que permite evitar que erros do passado se voltem a repetir. Quanto à questão do “debriefing”, esta não é mais do que uma ferramenta da gestão do conhecimento que permite obter resposta a quatro questões fundamentais acerca de uma determinada ação: 1 – O que é que aconteceu? 2 – O que era suposto ter acontecido? 3 – Por que é que houve essa diferença? Ou, por outras palavras, o que é que correu mal e o que é que correu bem? 4 – O que temos de fazer diferente da próxima vez?
A ferramenta do debriefing não é exclusiva da Instituição Militar, pois no exemplo supra referido da aviação comercial, também os pilotos usam vários briefings e têm perfeita noção da importância que o ato de reportar o que aconteceu durante o voo tem para a segurança dos voos seguintes e para toda a aviação em geral. Posto isto, pode-se concluir que, ao longo dos tempos, a técnica do debriefing tem demonstrado ser eficaz na busca incessante por “fazer melhor”, pelo que pode ser considerada uma ferramenta válida e útil para ser usada em qualquer circunstância e em qualquer organização.
O processo de Lições Aprendidas tem demonstrado ser uma ótima ferramenta que permite à liderança refinar e implementar as correções necessárias ao treino e formação dos recursos humanos
Por que razão o Exército, na parte operacional, é das poucas organizações onde pessoas e tecnologias estão intimamente ligadas?
O Exército, tal como qualquer outra organização, baseia a sua atividade nos seus recursos humanos, sendo por isso de vital importância a formação e treino que são ministrados a esses recursos. Por outro lado, o ambiente em que as operações militares normalmente se desenvolvem caracteriza-se por ser volátil, incerto, complexo, ambíguo e urbano, pondo constantemente à prova a capacidade de liderança das chefias militares e requerendo, cada vez mais, o recurso extensivo a tecnologias dos mais diversos domínios, que disponibilizem a informação necessária para o cabal conhecimento da situação operacional, que se constituam como ferramentas de apoio à tomada de decisão dos comandantes e ainda que garantam a proteção individual ou coletiva dos militares.
Ao longo do tempo, o processo de Lições Aprendidas tem demonstrado ser uma ótima ferramenta que permite à liderança refinar e implementar as correções necessárias ao treino e formação dos recursos humanos, de maneira a adequar a qualificação destes às novas tecnologias, revertendo-se este procedimento numa melhor e mais eficaz ligação entre o ser humano e os vários equipamentos usados pelo Exército.
Não é mais fácil confiar numa ferramenta tecnológica que raramente falha do que num ser humano que por vezes falha?
As ferramentas tecnológicas e o ser humano são vistos no Exército como recursos complementares e indissociáveis. Face às elevadas exigências do atual ambiente operacional, o militar, sem o equipamento adequado, não consegue cumprir eficazmente a sua função. Entretanto, a maioria dos equipamentos existentes também não conseguem, por si só, desempenhar todas as tarefas para as quais foram desenhados, principalmente se essas tarefas requererem o pensamento crítico necessário para a tomada de decisão mais adequada face à incerteza e volatilidade das situações. Daí que a tecnologia disponível é vista como um apoio complementar para reduzir as possibilidades de falha, ao mesmo tempo que providencia os instrumentos necessários para aumentar a eficiência e eficácia dos recursos humanos.
A capacidade de Lições Aprendidas foi implementada exatamente para providenciar, através da experiência, os conhecimentos necessários para que a ligação entre os recursos humanos e materiais se efetue da forma mais adequada e, principalmente, para garantir que erros humanos ou falhas tecnológicas do passado não se voltem a repetir.
As ferramentas tecnológicas e o ser humano são vistos no exército como recursos complementares e indissociáveis
Errar é humano e no Exército o erro põe em risco vidas humanas. Como ensinam e lidam com os erros operacionais?
É exatamente a plena consciência das possíveis consequências dramáticas de um simples erro que faz com que este tema seja levado muito a sério no seio do Exército, onde existe uma noção organizacional de que a melhor forma de mitigar as consequências de um erro é tentando evitar que o mesmo aconteça. Para isso, o Exército tem implementado todo um sistema integrado de educação e formação que permite transmitir aos militares as qualificações e conhecimentos necessários para que os mesmos desempenhem as suas tarefas com a menor probabilidade possível de cometer erros.
Toda esta formação é depois complementada com ações de treino específico, através de exercícios, que permitem aos militares colocar em prática os conhecimentos adquiridos e interiorizar procedimentos que irão minimizar o acontecimento de erros. Por último, a capacidade de Lições Aprendidas funciona como um sensor que permite aprender com os erros cometidos e recomenda ações corretivas específicas ao teor das formações ministradas, aos procedimentos em exercícios, e até mesmo à doutrina vigente, de maneira a procurar evitar que os erros se repitam. Resta referir que todo este sistema é transversal a todos os recursos humanos do Exército e não apenas aos operacionais.
Praticar muito significa cometer poucos erros, mas também promove o espírito acrítico de execução sem pensar. As Forças Armadas são conhecidas por treinar muito e praticar pouco (felizmente). Como conseguem construir este paradoxo? Muito treino e muita agilidade na decisão?
As Forças Armadas praticam até muito mais do que aquilo que porventura possa transparecer. Para além dos exercícios, as Forças Armadas estão empenhadas por todo o mundo e também em Portugal em operações, essas sim, felizmente, de apoio à paz e às populações, e não tanto de cariz bélico. A notória – e tantas vezes elogiada – eficácia e eficiência das Forças Armadas, e concretamente do Exército, deve-se de facto, entre outros fatores, ao treino e agilidade de decisão.
O treino garante a necessária proficiência na função a todos os militares, enquanto que a agilidade de decisão é conseguida graças a toda uma preparação mental e atitude das lideranças, que é conseguida através da rigorosa formação dos líderes aos vários níveis de comando, sendo naturalmente coadjuvados por um Estado-Maior de oficiais bem preparados e treinados, que garantem o processamento rigoroso de toda a informação disponível para apoio à decisão. A naturalidade com que todo este processo se desenrola pode levar a acreditar que existe algum tipo de “execução sem pensar”, e em boa verdade existem procedimentos individuais que têm que estar automatizados, mas, no que diz respeito a ações coletivas, tudo é muito bem pensado, ponderado e executado ao mais ínfimo detalhe.
A liderança é de facto uma área onde a sociedade civil pode aprender bastante com a instituição militar
As Forças Armadas são organizações com liderança muito vertical, mas os operacionais no terreno assumem uma ação muito horizontal. Como conciliam a doutrina militar com esta dualidade?
A eficácia e eficiência obtidas através do treino e da agilidade de decisão referidas na resposta anterior são válidas seja qual for a dimensão da Força, sendo que o que varia nas unidades de mais baixo escalão é o nível de tomada de decisão e também o apoio à tomada de decisão do Comandante que, nas unidades táticas mais pequenas, é bastante reduzido. No entanto, mesmo nos escalões mais baixos, o Comando-Missão tem de ser assegurado, sendo que o Comando-Missão é a função de combate que desenvolve e integra todas as atividades que apoiam o comandante no exercício da autoridade e direção, realçando a sua responsabilidade em compreender, visualizar, descrever, dirigir, liderar e avaliar, facultando ao Comandante e seu Estado Maior o conhecimento para operar num ambiente incerto.
Esta capacidade é baseada nos princípios da competência, da confiança mútua, do entendimento partilhado, da intenção do Comandante, das ordens emanadas para a missão, da iniciativa disciplinada e da aceitação do risco, e constitui-se como uma filosofia de comando e controlo que permite estabelecer baias de atuação, através da definição de intenções e conceitos claros dos escalões superiores, que permitam e fomentem a liberdade de ação e iniciativa dos Comandantes dos escalões mais baixos, de maneira a que, quaisquer que sejam as decisões tomadas e as ações levadas a cabo, as mesmas se encontrem alinhadas entre os vários escalões de comando. Esta forma de atuação pode levar a transparecer uma horizontalidade da ação, mas, em bom rigor, a verticalidade da liderança mantém-se sempre e em qualquer circunstância, uma vez que a atuação das Forças no terreno está em perfeita consonância com as intenções e diretivas superiores. O General George S. Patton resumiria este conceito em apenas uma frase: “Digam o que fazer, mas não digam como fazer, e eles surpreender-vos-ão com o seu engenho.”
Por que razão os comandantes militares são sempre os últimos a serem servidos?
Pela sua estrutura altamente hierarquizada, em que cada militar é simultaneamente um membro da organização e também um líder ao seu nível, sem dúvida que a temática da liderança é alvo de especial atenção no seio das Forças Armadas, havendo diversos estudos realizados neste âmbito e sendo inclusivamente ministradas aulas sobre liderança nos vários cursos que os militares frequentam ao longo da sua carreira. Logo na Academia Militar, os futuros oficiais começam a ser instruídos e formados na arte da liderança, sendo-lhes incutido o sentido da responsabilidade para com os seus militares, garantindo que nada lhes falta e assegurando que eles têm as melhores condições possíveis para executar as suas tarefas. Toda esta educação e formação cria nos cadetes a necessária preparação mental e atitude para que, enquanto futuros oficiais e comandantes, garantam que os seus militares são tratados, cuidados e servidos antes deles próprios, pelo que, atitudes por parte dos comandantes, como a referida na sua questão, são expectáveis e encaradas com perfeita naturalidade.
De maneira geral, a liderança é de facto uma área onde a sociedade civil pode aprender bastante com a instituição militar, principalmente naquilo que diz respeito à formação dos quadros superiores das empresas.