Nunca as empresas enfrentaram tamanha transformação. Com uma pandemia ainda não debelada, o aumento do custo do petróleo e a guerra na Ucrânia somam-se à transição digital e ao imperativo de uma atividade mais sustentável – estas duas, tendências que já vêm desde há mais tempo, mas que exigem igual esforço de adaptação. A RHmagazine tentou perceber o impacto destas mutações nas empresas e trabalhadores, através da perspetiva de três ângulos tão diferentes quanto ligados ao universo empresarial.
O Relatório de Riscos Globais 2022, publicado pelo Fórum Económico Mundial (FEM), dá conta de um mundo fragilizado pela pandemia, mas que tem de enfrentar simultaneamente os desafios da transição digital e da transformação sustentável. Acresce a isto as consequências que a guerra na Ucrânia está a provocar a nível global, sobretudo pelo aumento do preço da energia e de diversas matérias-primas.
O impacto nas empresas é direto e, consequentemente, na gestão dos Recursos Humanos (RH). Segundo o FEM, os riscos sociais e ambientais estão no centro das preocupações na atualidade, nomeadamente riscos de “erosão da coesão social”, “crises de subsistência” e “deterioração da saúde mental”. Apenas 16% dos inquiridos neste relatório se sentem positivos e otimistas em relação à evolução do mundo. A maioria dos entrevistados espera que os próximos três anos sejam caracterizados por volatilidade consistente ou por trajetórias fraturantes que irão separar os vencedores dos perdedores.
Contudo, ao longo de um horizonte de 10 anos, a saúde do planeta domina as preocupações, nomeadamente pela “falha de ação climática”, “tempo extremo” e “perda de biodiversidade”. Os inquiridos também assinalaram “crises de dívida” e “confrontos geoeconómicos” entre os riscos mais graves que o mundo tem pela frente.
Perante este cocktail, digitalização, sustentabilidade, recessão, inflação e dívida entram no vocabulário dos gestores que têm de conduzir as suas empresas num período histórico de particular turbulência, promovendo alterações em toda a linha.
“A digitalização já vinha a contribuir para mudanças radicais no mundo do trabalho. A pandemia veio acelerar tendências que já existiam nas organizações e no comportamento do cliente. Na realidade, a COVID-19 contribui para a maior mudança em comportamento de cliente. Sessenta por cento das empresas adotaram novos modelos de negócio e formas de trabalhar. Grande parte dos processos internos tornaram-se data-driven ou software-driven. Estas alterações implicaram uma transformação em grande escala e criaram agendas de mudanças profundas dentro das empresas”, explica Joana Santos Silva, diretora de Inovação no ISEG Executive Education e professora de Estratégia e Transformação Digital.
Um exemplo prático é-nos dado por Bruno Lopes, Research, Development, Innovation & Sustainability Manager da FORteams LAB, empresa vencedora da distinção “Heróis PME – categoria Geral”, promovida pela Yunit Consulting. O gestor dá conta das transformações simultâneas que estão a ser perpetradas nesta empresa sedeada em Vizela e suas implicações nos recursos humanos. A maior mutação está a ocorrer na área da sustentabilidade. “Passou de um projeto de desenvolvimento de produto para um mindset organizacional, tendo a gestão de topo como driver do processo”, conta Bruno Lopes.
“A digitalização já vinha a contribuir para mudanças radicais no mundo do trabalho. A pandemia veio acelerar tendências que já existiam nas organizações e no comportamento do cliente”
Joana Santos Silva
Para tal, a FORteams LAB possui um elemento de engenharia industrial que, de forma praticamente diária, recebe formação com as entidades consultoras e parceiras, pois é gestor de projetos e responsável pelo desenvolvimento sustentável da empresa. “Temos ainda um elemento de engenharia ambiental contratado para monitorizar a pegada ambiental da empresa e escrita do relatório de sustentabilidade, que também recebe formação contínua. Para além disso, é dada formação interna a todos os colaboradores, principalmente equipa comercial e responsáveis de secção”, acrescenta o gestor da empresa minhota que se dedica a produtos na área do desporto. A organização também está a adaptar a sua área comercial, as tecnologias que utiliza e a reformular processo, mas já lá vamos.
Empresas e colaboradores mudaram
As consequências de todos estes desafios sentem-se no próprio desempenho e gestão dos colaboradores. Está a transformar-se rapidamente a forma como trabalhamos, onde trabalhamos, com quem trabalhamos, por que trabalhamos e as tecnologias que utilizamos.
O bem-estar do trabalhador está a destacar-se cada vez mais, não só como consequência da pandemia, que veio valorizar o equilíbrio entre as vertentes profissional e pessoal – o “work-life” –, como também pelos interesses das novas gerações que colocam diversas variáveis na balança na hora de integrarem um posto. Tudo isto cruzado com a transição sustentável que as empresas precisam de fazer, de acordo com os critérios ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governação).
“Os trabalhadores pretendem que as organizações para as quais trabalham tenham um propósito e que sejam socialmente responsáveis e que o trabalho que fazem contribua para fazer a diferença”, destaca Inês Vaz Pereira, associate partner da Ernst & Young (EY).
“A gestão de colaboradores não tem como escapar de novos e robustos planos de ação que permitam reinventar os valores e a verdadeira missão dos nossos colaboradores, conduzindo a novas culturas organizacionais e mais diversas, inclusas e sustentáveis. Esta é a grande transformação que está a ocorrer”, refere ainda a especialista em RH.
Joana Santos Silva corrobora: “Hoje, a incorporação de uma política profunda de sustentabilidade, e uma forma de trabalhar alinhada com essa visão, passou a ser um requisito obrigatório. Uma visão empresarial centrada em valores é algo que tem impacto no próprio sucesso da empresa”.
“A diversidade e inclusão tem sido uma estratégia sensata para transformar a gestão de pessoas”
Inês Vaz Pereira
De acordo com um estudo da McKinsey, as empresas com ratings ESG consistentemente elevados apresentam um desempenho acima da média do mercado, tanto a médio como a longo prazo. Neste sentido, 89% dos executivos acreditam que uma organização que defende um propósito partilhado tem melhor satisfação e retenção de colaboradores.
“Num mundo com uma escassez de talento, este é um elemento crítico de atração e de retenção muito distintivo. Os recursos humanos têm um papel fundamental no sentido de desempenharem várias iniciativas relacionadas com códigos de conduta, iniciativas de equidade, modelos de desenvolvimento de competências e de liderança, formação na área, etc.”, acrescenta a diretora de Inovação no ISEG Executive Education.
Outro grande driver de mudança é a tecnologia. Segundo o FEM, até 2025, serão criados 97 milhões de novos empregos devido à digitalização de processos. Por outro lado, este mesmo motivo irá eliminar 85 milhões de postos de trabalho. Às empresas não restam alternativas a não ser digitalizarem o seu ecossistema, com grande destaque para a gestão de processos e de pessoal.
“Os trabalhadores pretendem que as organizações para as quais trabalham tenham um propósito e que sejam socialmente responsáveis”
Inês Vaz Pereira
Para Inês Vaz Pereira, “a transformação digital foi muito provocada pela transformação das competências dos colaboradores em relação ao uso de novas tecnologias e ao constante apelo das redes sociais para um mundo mais disponível, mais acessível, sendo expectativa dos colaboradores que as empresas disponibilizassem a mesma experiência digital no exercício das suas funções profissionais”. A pandemia veio acelerar de forma significativa o ritmo das mutações. Sendo que “o desafio para a gestão das empresas foi claro e num único sentido: caminhar para a tecnologia mais avançada, transformando os processos e dinamizando novas formas de trabalhar”, acrescenta a associate partner da EY.
A transformação, hoje em dia, já não é uma opção, mas uma necessidade. Qual a vossa visão desta realidade e de como devem as empresas enfrentar esta aceleração da mudança?
Joana Marques, Senior Account Manager na ACTUASYS: “A competitividade de uma empresa depende da sua capacidade em colocar no mercado, a um preço adequado, produtos e serviços que atendam aos padrões de procura desse mercado, ao mesmo tempo que é compensada pelos custos decorrentes do dispêndio dos recursos para que essa oferta possa estar disponível. Para que tal aconteça, é necessário que as empresas sejam ágeis na compreensão dos hábitos e interesses dos clientes, sejam conhecedoras da concorrência e sejam criativas, sem deixar de ser consequentes, no modo como gerem os recursos que têm ao ser dispor. A transformação digital das empresas é assim efetivamente, e antes de mais, não uma opção estratégica, mas sim uma inevitabilidade para as empresas que aspiram sobreviver, por quanto é a única via para que as empresas possam responder a estes desafios e, desse modo, competir.”
Voltamos ao nosso exemplo prático. Na ForTeams Lab, sente-se que o caminho da digitalização “é mais gradual, lento e exigente, uma vez que envolve mais recursos financeiros e mais reformulações nas dinâmicas da empresa”.
Entre várias alterações, Bruno Lopes salienta a reformulação do fluxo de comunicação no processo produtivo: “Melhorámos a comunicação interna entre os elementos produtivos e destes com os colaboradores de planeamento e comercial, uma vez que todos os elementos da value chain sabem, em tempo real, qual o ponto de situação e local produtivo de cada encomenda”. Para a integração desta plataforma, a formação foi contínua e persistente para todos os colaboradores da empresa.
A transformação, hoje em dia, já não é uma opção, mas uma necessidade. Qual a vossa visão desta realidade e de como devem as empresas enfrentar esta aceleração da mudança?
João Carvalho, Co-Founder & CEO da GFoundry: “Um processo de transformação digital só será bem sucedido se for acompanhado pela necessária mudança de mentalidades e comportamentos dos intervenientes, sendo necessário redesenhar as organizações no sentido de eliminar silos entre áreas, departamentos, tornado-as mais ágeis, alinhadas digitalmente e aptas a incorporar processos de mudança. As empresas devem também ter em conta a disparidade de velocidade das duas componentes que compõem um processo de mudança – a digital e a humana. Caberá aos gestores o desafio de conciliar de forma harmoniosa e eficaz estas diferentes realidades.”
“Na área de Recursos Humanos, existem várias soluções tecnológicas que permitem melhorar a captação e retenção de talento, auxiliam na avaliação de performance e aumentam a eficácia de processos”
Joana Santos Silva
Responder aos novos desafios de RH
Enfrentar situações novas e complexas faz parte do dia a dia de qualquer gestor. Mas sem dúvida que agregar respostas para tantas alterações em simultâneo é uma tarefa hercúlea. A formação surge como a solução para capacitar a rede de colaboradores, por exemplo, com estratégias de upskilling e reskilling. Para Joana Santos Silva, “não existem respostas pré-fabricadas ou claras a estes desafios”.
As variáveis são muitas e por vezes desconhecidas, pelo que “se torna importante investir em formação que habilite os gestores com ferramentas de tomada de decisão, de avaliação estratégica, de gestão de risco, de cultura e propósito, de liderança, entre outros”, acrescenta.
Para além de capacitar os colaboradores com os melhores conhecimentos e ferramentas, é também preciso apostar na diversidade e retenção de talento.
“Para além da automatização de processos através da robótica e inteligência artificial, de modo a permitir que os colaboradores se foquem nas suas atividades mais estratégicas e de maior valor acrescentado, a diversidade e inclusão tem sido uma estratégia sensata para transformar a gestão das pessoas”, sustenta Inês Vaz Pereira, uma vez que “é visível os resultados práticos nas equipas e na diversidade de competências que totalizam novos KPI e ritmos de performance desejáveis”.
A transformação, hoje em dia, já não é uma opção, mas uma necessidade. Qual a vossa visão desta realidade e de como devem as empresas enfrentar esta aceleração da mudança?
Pedro Reis Coelho, Sales & Marketing Director do ISQe: “A reinvenção de modelos de trabalho e o desenvolver de soluções rápidas para problemas novos em tão curto espaço de tempo, motivada pela própria dinâmica atual do mercado de trabalho e pelas respostas encontradas aos desafios que a pandemia trouxe a uma escala global, só é possível com o recurso a tecnologia digital adequada que permita agilizar processos de gestão, de forma integrada e interligada entre si. Uma solução que assegura a proximidade entre empresa e colaborador e que gere o ciclo de vida das pessoas na organização desde o recrutamento, à formação ou planos de carreira, e que proporcione um conjunto de dados analíticos sobre a performance organizacional suportando melhor o processo de tomada de decisão, é uma plataforma mais que necessária para enfrentar esta aceleração da mudança e que trará uma empresa mais ágil, competitiva e mais bem preparada para os desafios do presente e futuro.”
“A sustentabilidade passou de um projeto de desenvolvimento de produto para um mindset organizacional.”
Bruno Lopes
Outra estratégia que faz sentido as empresas repensarem para enfrentarem os atuais desafios de RH será a adoção de programas de reconhecimento e mérito. “Pessoas felizes nas empresas são pessoas reconhecidas com mérito e por mérito. E pessoas felizes não mudam de projeto, assumem espírito de compromisso e vestem a camisola da equipa”, destaca a consultora. A tecnologia, uma vez mais, pode desempenhar um papel fulcral na gestão de colaboradores.
Neste caso, Joana Santos Silva destaca que “na área de recursos humanos, existem várias soluções tecnológicas que permitem melhorar a captação e retenção de talento, auxiliam na avaliação de performance, aumentam a eficácia de processos, podem desenvolver mapas de perfis comportamentais e de competências, entre muitas outras aplicações potenciais. Estas tecnologias otimizam o tempo das equipas de RH, reduzem custos com tarefas processuais e permitem que os profissionais de RH se possam dedicar a atividades mais estratégicas”.
Artigo publicado na edição n.º 141 da RHmagazine, referente aos meses de julho/agosto de 2022.
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