Autor: Mário Ceitil, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas, Formador, Docente Universitário e Membro do Conselho Nacional dos Psicólogos
Possivelmente já todos nós passámos por situações em que determinadas pessoas aparentam elogiar-nos por algo de supostamente bom que fizemos, mas logo a seguir lançam-nos uma “farpa” certeira que imediatamente corrói ou, até, destrói todo o possível efeito positivo anteriormente gerado.
Vejamos um exemplo:
Alguém diz para outra pessoa: – “Parabéns pelo que fizeste! Ok, sei que não é propriamente uma grande coisa, mas está ao nível das tuas capacidades”.
Outro exemplo:
Dois “amigos” encontram-se e um diz para o outro, entusiasmado:
– “Fiz uma viagem a (tal parte) e adorei”.
Responde o outro:
– “Ah, sim? Boa! És um perito em viagens. Olha, eu também já lá estive, mas achei uma “seca”! Eu fui a (outro sítio) e esse, sim, é verdadeiramente fantástico”. E acrescenta, solícito: – “Devias era gastar o teu dinheiro em coisas que realmente valham a pena”.
Um terceiro exemplo:
Uma chefia (avaliador) diz para o avaliado:
– “Parabéns, melhoraste muito! Se continuares assim, talvez, um dia, consigas chegar ao nível dos teus colegas”.
E ainda mais um:
Um jovem chega a casa entusiasmado com as notas recebidas. Os pais veem as notas e dizem:
– “Não está mal! Mas podia estar melhor. Vê o teu irmão…”
As pessoas que adotam este tipo de atitudes comportam-se como autênticos sabotadores da autoestima dos outros, usando práticas, designadas por “negging”, cujo único objetivo é minimizar as ações e os contributos alheios através do recurso a um simulacro de elogio, em cuja formulação se encerra perversamente a sua própria negação. Neste sentido, o “negging” “consiste em formular críticas destrutivas disfarçadas de bem-querer”, conforme a expressão usada pela psicóloga Jô Alvim num artigo publicado em Psicoblog de outubro de 2019. Apesar de terem uma intenção e conteúdo, de facto, destrutivos, estas críticas “deixam a vítima confusa uma vez que são ditas com voz suave, em tom de ternura”.
O “negging” “consiste em formular críticas destrutivas disfarçadas de bem-querer”
Atualmente, esta é considerada uma prática dominante de muitos manipuladores, daquelas pessoas que usam estratégias intencionais para levar os outros a fazer aquilo que os manipuladores querem, sem que os manipulados se deem conta disso. No entanto, esta forma de agir comporta ainda algumas outras nuances que vale a pena ter em conta, particularmente se considerarmos as dinâmicas psicológicas geradas, tanto nos “neggies”, como nos seus alvos e as respetivas consequências, particularmente no que respeita aos contextos organizacionais.
Vamos por partes:
Aqueles que adotam estas práticas, e para além das meras intenções manipulatórias de condicionarem os sentimentos e as atitudes alheias, fazem-no, por vezes, como resposta a défices profundos de autoestima, que os leva a “só se sentirem seguros de si próprios na exata medida em que provocam insegurança nos outros”. Como se sentem inseguros e com sentimentos de inferioridade, a perceção do seu valor pessoal está na exata medida em que conseguem demonstrar a inferioridade dos outros, desqualificando as suas ações e denegrindo-os como pessoas.
Neste sentido, os “neggies” têm emoções e comportamentos que podem legitimamente enquadrar-se na síndrome de “vampirismo emocional”, caracterizada justamente pelo facto de uma pessoa só conseguir sobreviver emocionalmente “sugando” os outros para seu benefício próprio. E aqui, o benefício é obtido pela imputação de iniquidade a tudo o que é feito pelos outros, como se a única finalidade da existência do outro fosse alimentar a fantasia própria de lhe ser superior.
Os “neggies” têm emoções e comportamentos que podem legitimamente enquadrar-se na síndrome de “vampirismo emocional”
Por isso, e embora os comportamentos de “negging” possam, muitas vezes, aparecer com roupagens de arrogância e com atitudes típicas de alguém que ostenta um ego “do tamanho de uma catedral gótica”, na verdade, tudo isso não passa de uma coreografia ilusória que esconde o íntimo de uma pessoa marcado por um défice crítico de afirmação pessoal e profundos e dificilmente superáveis sentimentos de dependência.
Salvaguarde-se, no entanto, que estas práticas podem também ser exercidas sem uma intenção declarada de provocar dolo e sem a consciência do impacto negativo que podem ter nos outros. Se considerarmos, por exemplo, a última das situações atrás apresentadas, em que pais fazem “negging” ao filho através do exemplo do irmão, poderemos supor que o que vai na mente dos pais é provavelmente uma preocupação genuína em estimular um filho mais novo a melhorar, tendo como referência uma possível melhor performance do irmão. No entanto, e como reza o velho ditado, “de boas intenções está o inferno cheio” e, neste caso, a dita boa intenção dos pais pode redundar numa efetiva “infernização”, ainda que apenas temporária, da vida do mais novo.
A minimização pela comparação é, aliás, uma tática muito generalizada, tanto na vida pessoal, como na vida profissional. Atente-se, por exemplo, nas “velhas” práticas de avaliação de desempenho, seja pela comparação simples, seja pelo método “peregrino” da “comparação por pares”, seja ainda pelos processos que culminam na “democrática” publicação de resultados, que convida à disrupção de emoções primárias dos avaliados, seja pela exibição do orgulho enfatuado por aqueles que têm melhor classificação, seja pelo sentimento contido de despeito, raiva ou simplesmente humilhação pelos outros que ficam nos limiares das “médias da vergonha”. E para os eventuais leitores que me poderão acusar de apenas citar aqui práticas avaliativas passadas e desatualizadas, o meu desafio é analisarmos com alguma atenção e sentido crítico o que hoje ainda se vai fazendo por aí nesta matéria; é que, embora os meios de aplicação possam ter cosméticas tecnológicas que lhes suavizam a intenção, talvez os princípios gerais ainda se mantenham enfeudados dos mesmos paradigmas.
Humilhar os outros, seja de forma direta, seja por quaisquer subterfúgios que escondam a intenção, não é, nem será nunca, uma prática eficaz e aceitável para realizar aquilo que será sempre a mais nobre das missões humanas, seja dos líderes, seja de qualquer pessoa que pretenda deixar uma marca positiva na sua passagem da vida: a missão de ajudar cada um a evocar o melhor de si próprio.
O “negging” é, por isso, uma prática redutora e negativa de interação humana, tendo em conta que a sua base é sustentada na ação de reduzir a dignidade de outros seres humanos, através de uma (pelo menos) aparente hipervalorização de quem a pratica.
A questão é que, ao procurar reduzir a dignidade do outro, e antes de pôr o outro em causa, é a causa do próprio que se pode desmoronar, sob o peso inefável da sua indignidade.
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Em boa verdade existe uma falta, nas famílias e no ensino em geral, sobre como educar as atitudes. Tal lacuna induz indubitavelmente a padrões comportamentais inconstantes, egocêntricos, pouco claros, exigentes e manipuladores. Uma aposta na educação das atitudes e aqui, nas atitudes a ter durante o trabalho, em muito ajudaria. Enquanto não existir um programa em concreto continuaremos a viver e observar episódios desta natureza manipuladora cuja sobrevivência consiste na dependência de medos, de algo que alguém nunca satisfez e que incessantemente procura, na certeza de que os outros devem fazer por ele mesmo. Devemos agradecer antes de mais, que estamos perante um evidente sinal de alerta de um tema, praticamente desconhecido, e que ainda há muito que fazer para combater o narcisismo e o lixo emocional de certas pessoas, quer em casa, quer no trabalho. Contudo, se não formos praticantes da coerência incorreremos em ser igualmente vitimizadores dos outros, como tal ser coerente é também uma atitude. Não é necessário dar os parabéns ao Prof. Ceitil, eles são merecidos e evidentes em qualquer artigo da sua autoria, pela visão e pertinência dos temas abordados, mas sim dar um agradecimento por esta partilha!
Uma prática que muito fazemos , seja com a família, pares ou amigos !!! Na verdade, muito do que está escrito faz-nos reflectir em muitos dos ‘princípios’ e ‘valores’ em que desde cedo começamos a ser educados.
Muito interessante!
Parabens e obrigada !