O futurista Gerd Leonhard acredita que, na próxima década, a tecnologia e, em particular, a Inteligência Artificial (IA) vão substituir muitas das tarefas realizadas atualmente pelos trabalhadores. No entanto, mantém-se optimista sobre o papel dos recursos humanos.
Nasceu na Alemanha, vive na Suíça e é um homem do mundo. Gerd Leonhard foi guitarrista, compositor e produtor durante 12 anos. Com o boom da Internet, fundou várias startups e tornou-se um empreendedor na área da música e dos meios de comunicação social. Em 2006, o Wall Street Journal considerou-o um dos futuristas mais promissores e, em 2015, a revista Wired colocou-o na lista das 100 personalidades mais influentes da Europa. É autor de vários livros, entre os quais “The Humanity Challenge”, orador em Conferências pelo mundo inteiro, consultor e – garante – um humanista. No confronto tecnologia/humanidade, Gerd assegura que os robôs “não vão ser inteligentes como nós”.
Quando falamos de pessoas, recursos humanos, o que é que podemos esperar do futuro?
Muitas empresas estão a apostar em robótica para reduzir os custos com pessoal. É uma tendência global. Hoje em dia, a tecnologia ainda não é completamente fiável. Mas, em dez anos, a maioria das empresas vai poder ter máquinas que façam o trabalho das pessoas.
As máquinas podem substituir as pessoas em alguns casos?
Há casos mais óbvios, como um Engenheiro de Redes – que precisa de saber muito – mas não tem um trabalho ‘humano’, como uma conversa, é técnico. Pode-se enviar um drone para consertar uma torre, criar um software para resolver o problema… e, em dez anos, muitos problemas vão ser resolvidos com software.
Um robô poderia substituir um Diretor de Recursos Humanos e fazer, por exemplo, as entrevistas de recrutamento?
Poderia fazer as pesquisas de conteúdo, de marketing, financeira… de tudo o que tiver relação com factos e números. O nível mais baixo de informação são os dados, o segundo nível é o conhecimento. As máquinas estão a adquirir o conhecimento porque recolhem toda a informação, conseguem conjugá-la e dizemos que “aprenderam” a fazer determinada coisa. Mas não conseguem ter o terceiro nível de conhecimento, que é a compreensão. Compreender significa que temos a capacidade de ver para além dos factos.
É a capacidade de compreender que distingue os seres humanos das máquinas?
Para já, e durante os próximos 50 anos, é a compreensão, a sabedoria e o poder de imaginar. Isto é muito difícil para um computador. Um computador pode “ler” os nossos filhos e dizer que têm uma série de problemas. Mas não vai compreendê-los da forma que nós conseguimos. Na área da saúde, podemos ter um computador a fazer diagnósticos sobre a pele, que nos vai dizer: “Vi milhões de fotografias sobre isto e não é bom”. Mas não terá a capacidade de falar comigo sobre o problema porque não é humano. Segundo McKinsey, 50% dos trabalhos poderão tornar-se automatizados, em 50 anos, mas apenas 5% poderão ser completamente automatizados, como o funcionário da caixa de um supermercado, conduzir um táxi, fazer análise financeira. Basicamente o que chamamos de monkey work.
Na sua opinião, vão surgir outros tipos de trabalho?
Eu não sou pessimista sobre o mercado de trabalho porque acredito que, daqui a 10 ou 20 anos, não vamos precisar de trabalho ou de dinheiro como agora. Primeiro, porque há cada vez mais trabalhos que as pessoas fazem sem ser por dinheiro: trabalhos sociais, cuidar de crianças, da família… Tudo o que seja feito de forma voluntária. Para além disso, estamos sempre a inventar trabalhos. Atualmente, 20 milhões de pessoas trabalham em redes sociais. Há 10 anos, eram 500.
Daqui a 20 anos, vamos ficar em casa enquanto os robôs vão trabalhar? E pagam impostos e segurança social por nós?
(risos) É uma questão interessante. Se calhar, vamos trabalhar durante duas ou três horas por dia porque só vamos precisar de fazer o trabalho mais humano: tomar decisões, escrever histórias, desenvolver uma conversa… Tudo o resto, poderemos pedir à máquina.
Diz que “a Humanidade vai mudar mais nos próximos 20 anos do que mudou nos últimos 300”. Como?
Daqui a 20 anos, os computadores vão ter mais informação, mais dados, mais capacidade de decisão… Mas não vão ser inteligentes como nós. Daqui a cinco anos, podemos pedir a um computador que preveja o futuro de Portugal no que diz respeito à dependência de petróleo. E, se for o primeiro-ministro, poderá ter a previsão de todos os cenários possíveis.
Isso significa que vamos ter melhores políticos?
(risos) Acho que poderemos ter pessoas que aprendem muito depressa como o Tom Cruise no “Relatório Minoritário”. Por exemplo, um médico aprender uma técnica nova em cinco minutos através da realidade virtual – seria óptimo. Outra coisa que está a acontecer é que a tecnologia está a entrar no nosso corpo. Para já, está do lado de fora e é muito poderosa. Mas quando pudermos colocá-la na orelha, no pulso ou até no sangue, isso vai mudar-nos. Em 20 anos, vamos ter aparelhos que nos vão permitir ver como o super-homem. Isto muda a forma como nos entendemos até do ponto de vista biológico.
Que sociedade vamos ter daqui a 20 anos?
A boa notícia é que muitas coisas vão ficar mais baratas. Por exemplo, a música tornou-se muito barata. O Spotify custa 10€. Qualquer dia, temos um Spotify para carros e vai ser muito barato ter acesso a um meio de transporte. Os custos bancários vão baixar porque os Bancos estão online. Os custos médicos vão diminuir porque vamos ser capazes de ler o genoma, combinar os dados, obter um diagnóstico em casa, através de um aparelho, e ter acesso a melhores médicos mais depressa. Por outro lado, a ideia de consumo está enraizada na ideia de capitalismo. A determinada altura, esta lógica morre – a de que, se comprarmos mais coisas, serão mais baratas. Porque já são muito baratas. Há 20 anos um voo para a Tailândia era muito caro. Hoje em dia, é mais barato do que passar um fim-de-semana em Madrid. Muitas coisas vão tornar-se completamente banais.
Como é que nos preparamos para o avanço da tecnologia do ponto de vista ético?
Quando falo em ética é uma questão de respeito pelos seres humanos. Estamos a desumanizar a sociedade: estamos a retirar o lado humano dos negócios, dos recursos humanos, da Banca, de todo o lado. Precisamos de sensibilizar as pessoas para estes temas. Estarmos conectados é bom, mas estarmos conectados em excesso é negativo. É mais ou menos como comer: na quantidade certa faz bem; em excesso, provoca obesidade. Eu chamo-lhe “obesidade digital”. Muitas pessoas têm problemas como ansiedade, depressão, tendências suicidas. Temos de encontrar um equilíbrio.
Como?
Tanto os recursos humanos como a política são essenciais. Em primeiro lugar, ter regras que se apliquem a toda a gente. Por exemplo, não permitir que algumas pessoas sejam discriminadas por não saberem usar tecnologia. Ou regras que digam: não pode ser julgado pela sua ‘pegada’ nas redes sociais quando se candidata a uma vaga de trabalho.
Há dois anos, na Websummit, a Sophia disse que os robôs iam ficar com os nossos empregos. No ano passado, outro robô, chamado Furhat, tinha a capacidade de mudar a personalidade e expressar emoções. O que é vão ser capazes de fazer daqui a 20 ou 30 anos?
A maior parte do marketing dos robôs de Inteligência Artificial é só mesmo marketing. A Sophia é como uma torradeira. Não é uma máquina com quem possa conversar como estou a conversar consigo. A Sophia tem um leque pré-definido de respostas: eu faço uma pergunta, ela responde e até parece que a resposta é adequada. De uma maneira geral, o cérebro humano consegue fazer 300 triliões de cálculos por segundo. E há computadores fantásticos que conseguem fazer o mesmo. Mas fazem-no de maneira diferente. Pode dar a um computador um milhão de livros sobre Filosofia e o computador pode ler um milhão de livros num minuto. Quando tiver lido, vai conhecer todo o conteúdo, mas não entende o significado. Podemos perguntar ao computador o que é que está escrito na página 45 de um livro de Jean Paul Sartre e ele dá-lhe a resposta. Mas não saberá responder qual é o significado da vida. A inteligência humana envolve emoções, socialização, linguagem corporal. Qualquer psicólogo dir-lhe-á que o cérebro é apenas uma parte da nossa inteligência. Uma máquina pode olhar para mim e concluir “este é o aspecto dele quando se zanga” e pode imitar o conceito de “estar zangado”, mas não pode zangar-se. No fundo, estamos a discutir a existência. As máquinas não existem. Não têm sentimentos, consciência, vontade ou desejo.
Comparou, recentemente, um telemóvel a um cigarro. Por serem ambos um vício?
A tecnologia é como uma droga. Quando estamos sob o efeito de estupefacientes, achamos que somos os maiores, que está tudo óptimo e, quando passa o efeito, sentimos que precisamos de consumi-la outra vez para voltar a ter aquela sensação. Com a tecnologia acontece algo semelhante. Mas temos muitos vícios com os quais conseguimos viver: café, cigarros, álcool. O desafio é saber como manter o equilíbrio. Praticamente toda a gente pode beber álcool. Mas há regras para o álcool.
Também deveríamos ter regras para a tecnologia?
Precisamos de regras que sejam mais princípios e práticas do que proibições, porque senão as pessoas vão continuar a fazer. Devem ser os Governos a regular a tecnologia – porque tem influência nos negócios e nas pessoas – e não a sociedade. Porque vai haver tecnologia que não vamos querer utilizar, embora pudéssemos.
E como é que controlamos isso?
Precisamos de pessoas que tenham como trabalho refletir sobre o que devemos e não devemos fazer, o que deve e não deve ser legalizado. A indústria não tem motivação para questionar. Atualmente, o Facebook é uma das empresas mais ricas do mundo, mas está a prejudicar a sociedade, não porque quer, mas porque pode. O Governo tem de vir dizer: ‘Estão a ganhar muito dinheiro. Como é que podemos tornar isto mais justo?’. Já tivemos um grande desastre ambiental com uma empresa petrolífera, que nos custou muito caro. Não queremos que aconteça o mesmo com a tecnologia. Senão teremos cada vez mais depressões, suicídios, desemprego, terrorismo – uma série de consequências que não queremos. Neste momento, só estamos a pensar em dinheiro, sem avaliar as consequências. Temos de ver o sistema por inteiro.
Devemos temer o futuro com a evolução da Inteligência Artificial? O que vemos nos filmes poderá estar perto da realidade?
Acho que não devemos acreditar demasiado nos filmes. Os filmes, sobretudo os norte-americanos, baseiam-se no medo porque o medo vende. Mas a tecnologia que temos neste momento não está sequer perto desse nível. Creio que o futuro será melhor do que imaginamos.
Entrevista publicada na edição 122, maio/junho 2019, da RHmagazine.