Autores:
Jorge F.S. Gomes, professor no ISEG, Universidade de Lisboa
Leigh A. Jones-Khosla, doutoranda no ISEG, Universidade de Lisboa
O conceito de propósito
O conceito de propósito organizacional é um dos mais recentes a entrar no léxico da gestão, atraindo a atenção de académicos e profissionais, que elencam várias vantagens e benefícios associados às organizações que têm um propósito, por contraste às que não o têm. Termos como a visão e a missão cumprem um papel essencial em qualquer empresa, pois realçam o que a organização aspira a tornar-se no futuro e delimitam a sua esfera de operações, respetivamente. O propósito difere das anteriores, pois refere-se à razão de ser da organização, ou seja, ao porquê da sua existência.
A antropomorfização é comum nas ciências sociais e humanas, e o conceito de propósito organizacional é disso um bom exemplo. Com efeito, as organizações não possuem propósito per se; as pessoas é que têm (ou não) um propósito. Deste modo, propósito organizacional é um construto antropomorfizado a partir da ideia de propósito individual (Ashforth, Schinoff & Brickson, 2018), e refere-se a viver uma vida com sentido, que inclui transcender os interesses individuais, contribuindo para o bem comum e universal. Na pirâmide de Maslow, este corresponde ao sexto nível na hierarquia, isto é, às necessidades de auto-transcendência, menos conhecido pelos especialistas (Gomes, 2020).
Por transposição das ideias anteriores, deve concluir-se que o propósito de uma organização não se refere apenas ao porquê da sua existência. À dimensão existencial sobrepõe-se uma funcional, que para Lueneburger (2014, p.2) consiste num “intento partilhado que tem um impacto para além da própria organização”.
A emergência da ideia de propósito
O debate sobre o objetivo último de uma organização humana não é novo, mas a questão tornou-se central no primeiro quartel do século XXI, dada a crescente tomada de consciência que a razão de ser de qualquer organização não pode mais resumir-se ao defendido por Milton Friedman nos anos 70. O prémio Nobel de Economia e um dos principais defensores do princípio capitalista do mercado livre afirmou que “the business of business is business”, numa alusão à ideia de que o propósito de uma empresa é aumentar os seus rendimentos, em particular para os seus acionistas.
Qualquer outro resultado das ações de uma organização, incluindo a delapidação dos recursos naturais ou a degradação das condições de vida de populações indígenas em paragens distantes, não é preocupação nem das organizações nem das pessoas que lá trabalham. Aos benefícios para alguns correspondem, direta ou indiretamente, os malefícios para muitos, sejam eles outros indivíduos, outros povos, ou o planeta.
Não se podendo excluir a ideia de que as organizações servem principalmente os interesses de alguns, o facto é que elas não operam num vazio, estabelecendo relações com o seu meio envolvente, dele dependendo para o seu crescimento, mas para ele devendo contribuir, para que seja sustentável no presente e, sobretudo, no futuro.
A enxurrada de escândalos corporativos nas últimas décadas, os esquemas de corrupção entre políticos e empresários, e as novas gerações angustiadas com um futuro sustentável e mais exigentes em termos do sentido do trabalho, aliadas à rapidez da circulação das novidades globais, tem conduzido a um movimento de mudança radical no que concerne à atuação das organizações, sejam elas públicas ou privadas, nacionais e supranacionais.
Ao movimento aliam-se outras iniciativas de peso, como os 17 ODS delineados pela ONU em 2015, o aperto legislativo sobre a atuação de indivíduos e empresas, e novos conceitos e modelos nas ciências fundamentais e aplicadas, de entre os quais um exemplo recente é o de Gestão Verde de RH (Renwick, Redman & Maguire, 2013).
O propósito do propósito
Conseguir que todos numa organização partilhem do propósito definido superiormente é uma ideia fantasiosa. Em boa parte das empresas os empregados não conhecem sequer a visão e a missão da organização, nem os seus valores explícitos e comunicados. E aqueles que os conhecem, podem ter pouco incentivo para contribuir para os objetivos corporativos, estando mais atormentados com garantir o suficiente ao fim do mês para sustentar a família, e menos preocupados com a sustentabilidade do planeta ou de comunidades distantes.
Quanto a outros grupos de interessados (stakeholders), como os primários (e.g., fornecedores e consumidores) ou os secundários (e.g., governo e imprensa), encontram-se também engajados nas suas próprias finalidades, e envolvidos nos seus afazeres e problemas diários, pelo que enfrentam amiúde o mesmo nível de desinteresse ou despreocupação ou desmotivação por causas maiores, por parte das pessoas que compõem o grupo específico.
Pelo exposto, conclui-se que a busca pela razão da existência é algo inteiramente idiossincrático e, por conseguinte, impossível de partilhar ou exigir que todos partilhem o que é definido por outrem. Não quer isto dizer que um largo número ou uma larga maioria não comunguem de certos valores, de certas ideias, ou de certos princípios. Mas demandar que todos tenham a mesma resposta à questão “porque existo/existimos?”, é de uma ingenuidade extraordinária.
O papel da GRH
Se a resposta à questão anterior é única para cada indivíduo, o mesmo se poderá dizer para cada organização, mas existe uma diferença. É que quando uma organização define um intento, os interessados que gravitam à sua volta podem aceitar e aderir ou não a esse intento. No que concerne os empregados, a GRH tem aqui um papel preponderante, comunicando e informando sobre um propósito organizacional autêntico, e assegurando, através das várias práticas à sua disposição, que existe um alinhamento mais ou menos robusto entre os vários propósitos individuais e o da organização.
Todavia, dado que a função pessoal exerce atividades de fronteira, como o recrutamento e a comunicação para o exterior, então o seu papel pode incluir a transmissão do propósito coletivo a outros stakeholders, particularmente os do grupo secundário.
Mas existe uma terceira forma em que a GRH pode contribuir substantivamente para o movimento de mudança atrás referido. Como se viu, o conceito de propósito tem uma parte existencial e outra funcional. Para Maslow, Lueneburger, e outros, a auto-transcendência é como um patamar superior de existência, em que a pessoa deixa de estar estritamente focada na sua individualidade, para passar a cogitar sobre a sua coletividade. A mudança de atitude e mentalidade envolve talvez uma dimensão temporal, para além da espacial. Assim, a pessoa deixa de estar centrada apenas no presente, e começa a incluir o futuro na sua vida.
O entendimento de que a sobrevivência de gerações futuras depende da geração atual pode implicar atuações corajosas, como deixar de estar tão bem agora, para que os próximos possam estar minimamente bem.
Ora é neste último plano que a GRH pode dar um contributo significativo, educando e auxiliando na transformação pessoal, mais do que profissional.
Mudar atitudes, comportamentos e mentalidades não é tarefa estranha para a GRH. Os profissionais de GRH têm os instrumentos, o conhecimento, e as competências para o fazer. Por conseguinte, o desafio coloca-se em conseguir que todos os empregados, incluindo gestores e outros grupos de interessados, deixem de estar centrados em si próprios no aqui e agora, para começar a tomar consciência dos resultados das suas ações nos outros que estão mais além e no amanhã.
Não é um desafio pequeno. Mas é de uma importância tremenda. Pode mesmo ser esse o propósito da GRH do futuro.
Referências Bibliográficas
Ashforth, B., Schinoff, B., & Brickson, S. (2018). “My Company is Friendly,” “Mine’s a Rebel”: Anthropomorphism and shifting organizational identity from “What” to “Who”. Academy of Management Review, 45(1), 29-57.
Gomes, J.F.S. (2020). O sexto nível. A Pátria, acedido de https://apatria.org/ambiente/o-sexto-nivel/
Lueneburger, C. (2014). A culture of purpose: How to choose the right people and make the right people choose you. John Wiley & Sons.
Renwick, D.W.S., Redman, T., & Maguire, S. (2013). Green Human Resource Management: A review and research agenda. International Journal of Management Reviews, 15(1), 1-14.