Na “espuma dos dias” há muitas pessoas que, apesar das estatísticas preocupantes que vão sendo quotidianamente publicadas sobre os números da COVID-19, constatam que, para sua surpresa, não conhecem diretamente ninguém que tenha sido infetado e, muito menos, que tenha tido manifestações clínicas preocupantes e também não conhecem ninguém que tenha conhecido diretamente alguém que tenha alguma vez sido infetado.
Tais pessoas, por essa ausência de verificação empírica, vão construindo, do surto epidémico, uma perspetiva basicamente abstrata e, digamos, concetual e vão progressivamente remetendo o tema para uma certa banalização.
No entanto, há que distinguir pelo menos dois tipos de consequências, ou, mais propriamente, de consequentes, desta epidemia, cujos efeitos, embora diferentes, podem ser igualmente devastadores: as pessoas que foram ou são diretamente “infetadas” e todas as outras, tendencialmente em muito maior número, que foram, ou são, direta ou indiretamente “afetadas” por ela.
E se muita gente pode ser bafejada pela fortuna de não ser nem conhecer ninguém que tenha sido “infetado” pelo vírus, já será provavelmente mais difícil encontrar alguém que não seja ou tenha sido “afetado” por esta crise. Em boa verdade, todos os “infetados” foram evidentemente “afetados”; mas nem todos os “afetados” foram, ou virão necessariamente a ser, “infetados”.
Esta situação traz inevitáveis e importantes consequências tanto no domínio social mais vasto, como ao nível dos processos e modos de gestão nas organizações. A maior parte das pessoas que, embora não tendo sofrido danos físicos, sentiu, e por vezes muitos, danos psicológicos, são pessoas que sofreram em silêncio, sem que o seu sofrimento tenha sido exposto à crueza dos comentários alheios ou à frieza das estatísticas. Por isso, é não só difícil avaliar a intensidade da dor experimentada, como a real profundidade e extensão das suas consequências nos equilíbrios psicológicos e emocionais de quem a viveu.
Ora, à medida que as atividades profissionais vão progressivamente regressando ao normal, as empresas e as chefias, porque desconhecem a natureza e a extensão do sofrimento psicológico a que muitos dos seus colaboradores foram sujeitos durante o confinamento e os períodos de ausência física dos postos de trabalho, não sabem por vezes como atuar perante colaboradores que evidenciam alguma instabilidade, como, por exemplo, dificuldades de foco e labilidade emocional e que, por isso, adotam comportamentos atípicos e inesperados e até tendencialmente contra produtivos.
O que fazer, então? Como lidar com essas pessoas? Como fazer para, de acordo com a expressão de David Kessler num artigo da HBR, “ transformar o stresse pós-traumático em crescimento pós-traumático?”
Para além de outras hipóteses e ideias que não cabem no espaço desta crónica, há pelo menos três condições que é fundamental que as lideranças consigam garantir neste momento de transição para um tal “novo normal”, que ainda não sabemos muito bem o que vai ser: adotar uma postura de grande integridade e empatia, ter um grande respeito e sensibilidade ao sofrimento alheio e priorizar a resiliência em relação à eficiência.
Ao afirmar isto, não se pretende obviamente sugerir que a eficiência deixou de ser importante. Pelo contrário, a possibilidade de uma retoma rápida e consequente das atividades profissionais, pressupõe sempre manter a capacidade de fazer bem à primeira e agilizar as cadeias de valor para garantir um melhor e mais atempado serviço ao cliente.
No entanto, os cenários aqui traçados convocam a necessidade de uma (ainda) maior atenção aos fatores especificamente humanos nas relações profissionais, que agora assumem uma relevância cada vez mais crítica. É que, à medida que a crise se aprofunda, vamo-nos apercebendo de que as disrupções podem ser potencialmente catastróficas, conduzindo à perda massiva de empregos, à desestruturação das modalidades tradicionais de organização e de relações de trabalho e ainda à possibilidade de destruição de talentos, seja pelo possível impacto nocivo das emoções negativas na performance, seja pelo puro e simples desaparecimento dos contextos organizacionais onde esses talentos se têm manifestado.
Neste contexto de grande turbulência, algumas das principais tendências que vinham sendo esboçadas no esteio da Quarta Revolução Industrial, designadamente a substituição do trabalho humano pelas máquinas e a “morte da distância”, acabam por ter um retrocesso e as pessoas começam a preocupar-se cada vez mais com aquilo que “podem tocar e sentir”, assim como com a materialização física dos espaços onde atuam. Ou seja, face à evolução desordenada e imprevisível do “high tech”, as pessoas voltam-se para aquilo que, finalmente, é mais profundo, autêntico e imutável no ser humano: a valorização do “human touch”.
É por isso que algumas “metacompetências”, como inteligência emocional e, em particular, a resiliência, assumem uma importância cada vez maior, pelo seu efeito estruturante noutras competências mais, digamos “operacionais” e tradicionalmente mais diretamente indexadas aos padrões de eficiência profissional.
É que, sejamos claros, um colaborador pode realmente ter competências técnicas de muito bom nível e ter mantido um percurso profissional que permite, com objetividade, incluí-lo na categoria de “talento”. Mas se, durante uma crise complexa e profunda como a que presentemente vivemos, ele ou ela tiverem experimentado níveis de sofrimento com os quais têm ou tiveram dificuldade em lidar e dos quais sentem dificuldade em libertar-se, é inevitável que isso irá afetar, de uma forma mais ou menos intensa e mais ou menos prolongada, a sua performance profissional. E sem resiliência, que é uma competência verdadeiramente indispensável para que uma pessoa consiga lidar bem com situações complexas e psicologicamente desestruturantes, a eficiência não vai provavelmente conseguir resistir à erosão do desgaste emocional e corre o risco de se perder.
Também por isso necessitamos de líderes capazes de compreender que a compaixão e a empatia são hoje, mais do que nunca, competências essenciais para o seu sucesso, enquanto líderes, e para o sucesso profissional dos seus colaboradores e das empresas que dirigem.
Porque, finalmente, é no florescimento das capacidades mais genuína e autenticamente humanas, que reside não só o verdadeiro sentido mas também a esperança num futuro melhor para as organizações.