Trinta anos à frente de uma instituição cultural. A Teresa Ricou será, provavelmente, a gestora cultural de maior longevidade. Como é que vê a gestão cultural?
Não serão 30 mas à volta de 40. De qualquer forma, são umas tantas décadas… nem vale a pena fazer essas contas com precisão. A gestão cultural é a mais complexa das gestões. A gestão cultural implica uma enorme concentração de capacidades, umas intelectuais e muitas outras de ordem prática e operacional: exigência de critérios, decisão, mobilização, planificação, optimização de todos os tipos de recursos, controlo e avaliação em todas as fases, para além da criatividade e da energia empreendedora.
Ter que ser exemplar é um enorme peso.
Na gestão cultural estamos a transformar o mundo, a ilustrá-lo e a “carregar as baterias” das pessoas. Em termos de conteúdos, estamos a lidar com o que há de melhor na vida, no mundo, na humanidade. Estamos a abrir espaços para as expressões e as vivências: emoções, sentimentos, experiências, conhecimentos, sensações, percepções, aprendizagens, satisfações, contemplações… E temos que fazer tudo isto com método e com princípios referenciais, sempre atentos aos sinais exteriores para intervir no momento certo.
Acredita que o Estado deveria apoiar as indústrias criativas, nomeadamente ao nível da contratação, com ferramentas diferenciadas das habitualmente usadas pelo tecido empresarial?
Sim e prefiro não usar o verbo no condicional. É uma das missões do Estado e deve ser cumprida e cada vez mais qualificada. O sector cultural e criativo é essencial para a coesão social de qualquer sociedade. Estamos no domínio do desenvolvimento das nossas identidades. O Estado deve apoiar e para isso deve ter políticas e critérios claros. Deve dialogar e contratualizar com os agentes.
Mesmo do ponto de vista macroeconómico, este sector já anda na ordem dos 3% da riqueza criada em Portugal e assegura muitos milhares de empregos em toda a espécie de regimes. Em termos internacionais, é também um sector “mostruário” de grau de desenvolvimento. Mas é um sector com racionalidades muito sui generis, em que muitas vezes se faz e depois é que se há-de resolver como se paga ou ganha. Por muitas razões acumuladas, o Estado deve diferenciar o sector cultural e criativo do chamado tecido empresarial corrente. Uma das áreas em que o Estado deve contribuir para o desenvolvimento deste sector “carregado de futuro” é ao nível do que chamam ferramentas de funcionamento. Mas é só uma das parcelas da missão do Estado. Todas devem ser equacionadas.
Parece-lhe que algum dia poderemos caminhar para uma gestão cultural autónoma e auto suficiente ou a subsidiodependência é uma constatação intransponível?
Sim, já vimos fazendo esse caminho – da autonomia e auto-suficiência −, a que eu diria: participação, antecipação e planificação. A subsidiodependência não é uma expressão muito pertinente para o sector cultural e criativo. Actualmente, aplica-se mais nos sectores das políticas sociais. As relações praticadas neste sector já são de negociação, contratualização e parceria, seja com o Estado, seja com as empresas, seja entre agentes do próprio sector. Foi-se estabelecendo um sistema de circulação de bens e serviços, quer públicos quer semipúblicos, que se baseia em contratualizações e em contrapartidas para o equilíbrio social.
Nenhum Estado pode abdicar da sua missão cultural e a cultura é produzida na sociedade. Existem os vários operadores e mediadores, portanto ao Estado compete-lhe regularizar e disponibilizar, preparar e reforçar a rede nas diversas modalidades enquanto recursos públicos. Mas esta missão é daquelas que não se restringe ao Estado, é uma missão colectiva e comunitária que deve ser assumida e concretizada por todas as organizações, instituições, empresas, fundações… Não estamos na lógica do subsídio mas sim na lógica do financiamento de parcerias.
No meu caso, centrada no Chapitô, asseguro que andamos contínua e imparavelmente a empreender nisso da “economia social”, sempre a explorar todos os “nichos” e sempre à procura de soluções, formas e modalidades de autofinanciamento. Assumimos como obrigação nossa esse autofinanciamento, mas desenvolvemos uma série de bens e serviços que não podem nem devem deixar de ser contratualizados com quem de direito (porque temos uma escola, porque temos respostas sociais sujeitas a acordos e protocolos, porque temos uma companhia e uma programação, etc.).
Viveu na Europa nos anos que antecederam o 25 de Abril. Os modelos de gestão cultural nacionais ainda estão longe dos modelos europeus?
Sim, estão longe no que respeita às políticas estatais existentes e aos dispositivos organizacionais. O que conheci e conheço melhor é o francês, mas temos no Chapitô muitas relações com outros países europeus (Alemanha, Espanha, Itália, Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, entre outros). De todos os que conheço, nós somos os mais incipientes, com práticas políticas demasiado variadas e incógnitas consoante vão rodando os governos, os governantes e as assessorias. Nas suas histórias recentes, a França ou a Alemanha, o Reino Unido ou até a Espanha têm caminhos culturais nacionais muito mais estruturados e com muito menos sobressaltos. Esses países têm conseguido encontrar modelos de co-responsabilização e partilha e nós estamos um tanto ao deus-dará. É preciso impulsionar, provocar, caminhar no sentido de uma cidadania activa.
Relativamente à gestão cultural praticada pelos nossos agentes actuais, quer nos grandes equipamentos (museus, fundações, etc.) quer nos projectos, os nossos modelos estão perfeitamente actualizados em relação ao que se passa no resto da Europa e temos até vários pólos de inovação. A nossa criatividade gestora neste sector cultural e criativo e a nossa inventividade de modelos ainda está muito subaproveitada, um pouco insípida e desfasada da realidade. E pode ter um papel muito mais relevante na nossa competitividade à escala internacional.
Há uma política para a criatividade nacional ou os modelos de cultura ainda seguem os “francesismos” e “estrangeirismos”?
Não, não há uma política para a criatividade nacional. Se há, não a conheço. Mas se não conheço é porque não está suficientemente divulgada. Os chamados “francesismos” e “estrangeirismos” foram modelos de referência muito importantes. Nós aplicámo-los e adaptámo-los à nossa realidade. Há alguns estudos, mas não passam disso, e há algumas redes regionais e outras especializadas que procuram ter políticas que estimulam a criatividade por forma a melhor responder à realidade. Hoje em dia estamos plenamente nesse jogo entre os modelos e padrões que vêm através da globalização e os modelos que vêm com a tradição e com as nossas singularidades. Já somos todos aldeões e estrangeiros em simultâneo.
E a nível internacional, o Chapitô está de alguma forma ligado a redes europeias de intervenção cultural?
Sim, claro. O Chapitô é circense e tem uma grande preocupação social. Sendo circense sempre foi mundano. Está, e sempre esteve, ligado a redes europeias e internacionais de intervenção cultural e social. Tendo sido um agente activo e pioneiro na criação da federação de escolas de circo europeias, o nosso caso é diferente de qualquer escola, porque temos sempre o cultural intrinsecamente ligado ao social. Somos membros activos de n redes, desde federativas (exemplo da Federação Europeia de Escolas de Circo) a redes especializadas e redes de projecto: a arte na luta contra a exclusão (em standby). Estamos sempre a enredar e a ser enredados.
Sente que as ONGD conseguiram encontrar o seu papel na sociedade ou parece-lhe que ainda não conseguiram romper a subsidiodependência que muitos dizem as caracterizar?
Sim, mais uma vez digo que isso é um caminho que vai sendo feito. As ONGD que conheço têm conseguido encontrar o seu papel na sociedade. E as que conheço também não se caracterizam por aquilo a que chamam subsidiodependência, ou seja, são ONGD que funcionam no sistema internacional das candidaturas, das contratualizações e dos mecanismos de autofinanciamento, tal como as ONGD do resto da Europa e do resto do mundo. As ONGD são parceiros activos na sociedade; elas deverão ser o garante do desenvolvimento social em estreito diálogo com o Estado.
Não falemos de subsidiodependência mas sim de participação. Criar condições, é neste ponto que o Estado se pode diferenciar, no regular o financiamento. O termo “subsidiodependência” não está no plano nem dos agentes culturais e criativos nem das ONGD. Nós e os nossos parceiros de redes estamos noutro plano, em sistemas de relações e conexões contemporâneos e negociais.
Enquanto ONGD de referência, como é que o Chapitô se posiciona junto das outras ONGD?
O Chapitô é membro da Plataforma Portuguesa de ONGD e mantém relações de cooperação activa com diversas ONGD credenciadas, através de diversos projectos, iniciativas, intercâmbios, etc.
Por não terem meios de subsistência próprios, as ONGD servem os interesses políticos?
Primeiro, algumas ONGD vão tendo alguns meios de subsistência próprios, as suas economias sociais. Esse capital vai-se adquirindo gradualmente e por força da iniciativa, das solidariedades, da eficácia das boas práticas e da demonstração de resultados. Segundo, todos nós temos que estar em interacção com o sistema político, por forma a responder aos chamados “interesses sociais”. Isso faz parte da nossa dinâmica e cada um tem que encontrar o seu trajecto de coerências.
O Chapitô é uma referência da cidade de Lisboa. Isto acontece por acaso ou há uma preocupação específica em, como já a vi referir várias vezes, “animar a cidade”?
Pois, não é um acaso. Dar oportunidade aos jovens, consciencializá-los para o papel importante deles na conquista desse espaço, a cidade. O que pode ser acaso é o Chapitô ter reconstruído um edifício, património do Estado, situado num sítio que é milenarmente circense e de espectáculo – Castelo de São Jorge, e reconvertido uma prisão em Casa de Cultura, ao lado do teatro romano e da entrada medieval para a cidadela. É uma missão totalmente assumida e adoptada por nós, enquanto projecto e instituição. Nós somos e queremos continuar a ser um pólo de referência na animação da cidade de Lisboa. Não somos intermitentes e não temos interrupções. O Chapitô nunca pára. No Castelo tentamos, queremos ser exemplares e exímios. Frequentemente invadimos a cidade a partir do Castelo. E mesmo assim não nos chega. Queremos mais e fazemos por isso. Lisboa é uma plataforma do mundo e temos vistas muito largas. Ele poderá ser (pela sua integração) um observatório virado e aberto ao mundo.
Acha que Lisboa é hoje uma cidade de referência na Europa?
Sim, sem dúvida. Lisboa é mirabolante e magnífica. Cidade viva, simpática, luminosa. Carregada de História e de histórias. É impossível não se gostar de Lisboa e das suas ambiências. Se não é ainda mais referencial é por falta de promoção e de eventos mobilizadores. Mas um certo remanso (com sabor a sul e a África) também faz parte do encanto da cidade.
Recentemente recebeu, das mãos do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a Medalha Municipal de Mérito Grau Ouro. Que significado tem esta distinção?
É uma honra e encaro-a como um reconhecimento pelo trabalho que temos feito e pelos resultados que temos obtido. É um estímulo para a continuidade.
Volto à questão da gestão cultural. Em cultura é fácil gerir pessoas?
É dificílimo gerir pessoas, sobretudo quando são pessoas muito diversas e em formação. Tenho a impressão de ter nesta casa o catálogo completo de todos os tipos de pessoas que podem existir, comuns e incomuns. Às vezes chamamos-lhe a nossa babilónia ou a nossa torre de Babel. As artes e ofícios de gerir pessoas são muito especiais e muitas vezes preciso de ajudas. A cultura portuguesa (talvez ainda por causa do nosso passado) é muito passiva. Eles é que mandam, eles é que sabem. Dá muito trabalho as pessoas implicarem-se, agirem. Pensar, fazer o trabalho de casa é difícil.
E ao nível do recrutamento: como se faz o recrutamento dos futuros artistas?
Uma das principais formas é através da escola e da formação. Temos uma escola profissional, oficial e integrada na rede de ensino, temos cursos de fim de tarde, uma espécie de academia livre e aberta, e organizamos workshops especializados. Parte significativa dos futuros artistas são nossos formandos ou aprendizes. Por outro lado, a nossa relação com a FEDEC é muito activa, e os artistas e profissionais acabam por escolher o Chapitô como primeira opção.
Sente-se bem no papel que desempenha atualmente?
Isso é sempre uma coisa ambígua. Claro que gosto do que faço. Vivo a fazer o que faço e vou gostando da vida que vou vivendo. Claro que gostaria de ter tempo e disponibilidade para o meu próprio trabalho artístico, que sou obrigada a ir deixando para trás. Muitas vezes tenho desgostos ou encontro-me desgostosa. Mas faço o que tenho que fazer e que não posso deixar de fazer. Dou-me muito bem comigo própria. A minha inquietação, no rigor, na qualidade de serviços, leva-me a uma constante procura de parceiros interessantes e interessados. Pessoas com brio e propostas profissionais. Espírito de missão precisa-se.
Quais as maiores dificuldades que sentiu sendo uma mulher numa profissão normalmente exercida por homens?
Esse tipo de dificuldades não é comigo. Com essas dificuldades dou-me eu bem. Acho que nem penso nisso, nem nunca tive ou senti qualquer espécie de condicionamento. Inventei forças e ânimo para enfrentar muitas barreiras, sou persistente.
Não gosta da palavra “sucessão” pois considera que não dirige um reino, mas as mudanças são naturais. Pensa em algum dia deixar a liderança do Chapitô e abrir as portas à mudança?
Também não penso muito nisso. Acho que essas coisas acontecem “naturalmente” e quando tiverem que acontecer. Isto não é uma empresa nem é uma família, mas um projecto que propõe uma nova forma de organização social. O Chapitô é uma instituição e tem as suas estruturas em funcionamento regular e em plena interação. Quanto à mudança, é um dos meus grandes problemas: as portas estão sempre abertas à mudança, para a forma de melhor actuar e de agir, desde que se responda a um propósito coletivo.
O atual Governo entendeu não fazer sentido, no actual quadro financeiro, a existência do Ministério da Cultura. Sente algum constrangimento por esta tomada de posição?
Sim, sinto. Desde logo por motivos simbólicos. A cultura baixou de estatuto na hierarquia do Estado, com todas as consequências prejudiciais que vêm por arrasto. Mas também por razões objectivas. A cultura deixa de ter lugar no Conselho de Ministros, por exemplo. Não é o primeiro-ministro que tem condições ou possibilidade de ali defender os interesses do sector cultural. Perante as opções e face à distribuição de recursos ou à definição de prioridades, não vai haver ali nenhuma voz a defender a cultura. Só me resta a expectativa de que o secretário de Estado seja capaz de estabelecer e implementar um modelo e um sistema que assegure a vitalidade e desenvolvimento do sector. Lá estamos nós em mais um sobressalto e perante nova incógnita. O Estado não pode demitir-se deste papel, dinamizador, interventivo e estratégico.
(Entrevista publicada na RH Magazine – Julho 2011)