Arménio Rego
Lead Lab da Católica Porto Business School
Miguel Pina e Cunha
Professor na Fundação Amélia de Mello de Liderança da Nova School of Business and Economics
Não é necessário ser talentoso para ter talento. Muitas pessoas talentosas não dão mostras, mediante o seu desempenho, do seu talento. E muitas pessoas menos talentosas, mas dotadas de perseverança e outras qualidades, adquirem e revelam talento.
A má “gestão do talento” entende o talento como capital fixo. A boa entende-o como capital que pode ser desenvolvido. Todos podemos ter talento. Daqui decorre a necessidade de as organizações e os seus líderes atuarem como multiplicadores de talento
Crença ou realidade?
Uma empresa portuguesa constituiu uma “bolsa de talentos” com base, em parte, nas avaliações de desempenho. Uma investigação concluiu que a gestão de talentos é eficaz porque os colaboradores da bolsa denotam melhor desempenho! Estranho, não é?! Mais estranho é que as diferenças nas cotações de desempenho, entre os talentosos e “os outros” eram modestas e nem sempre estatisticamente significativas. Mais: alguns membros da bolsa de talentosos apresentavam cotações de desempenho pelo menos iguais a cotações obtidas pelos “outros”. Moral da história: quando se acredita em algo e não se está disposto a questionar a crença, é fácil encontrar “evidência” que sustente a crença.
Não contestamos o valor da gestão de talento. O que nos preocupa é o modo como é interpretada e concretizada. Gerir “talento” é diferente de gerir “talentosos”, sobretudo se por “talentosos” se entender “pessoas com talento inato”. O talento está potencialmente presente em todas as pessoas. Mesmo uma “vulnerabilidade” como a dislexia não obstou ao talento estelar de empreendedores como Ingvar Kamprad (IKEA), Richard Branson (Virgin) ou Henry Ford [6, 8, 12]. Um de nós conhece um jovem economista português que transformou gaguez e timidez em fonte de energia. Após várias experiências internacionais em funções de liderança de equipas, trabalha agora na Suécia, numa multinacional conhecida. Alguém o teria inserido numa bolsa de talentos?!
O talento de quem ficava sempre em último
“Era muito mau, ficava sempre em último”. “(…) Só o convidei para ficar a treinar connosco por causa da determinação que ele demonstrava, a sua insistência, o nunca desistir. Os outros miúdos eram melhores, mas [ele] era o mais determinado (…). Houve quem achasse que o miúdo nunca daria nada de especial”. Estas expressões[5, 7] são de Hélio Lucas, treinador de Fernando Pimenta, o canoísta medalhado olímpico. Pimenta não era talentoso. Mas conquistou talento. Diferentemente, alguns talentosos nunca saem da “cepa torta”. Quando Pedro Candeias perguntou a Luís Figo se alguns miúdos com quem ele havia treinado poderiam ter ido longe, o melhor futebolista do mundo em 2001 retorquiu [3]: “Tive muitos companheiros muito melhores do que eu, mas que por uma razão ou outra não conseguiram atingir aquele nível. Eu acho que a qualidade não é o fator mais importante”. Candeias indagou-o: “Então?”. Figo respondeu: “Dedicação, treino, persistência, mentalidade, paixão: isso supera 100 vezes a qualidade técnica e individual”.
Estrelas que, afinal, são cometas
Talentos criados, em vez de nascidos, não são um exclusivo do mundo desportivo. Investigadores da Harvard Business School [4] analisaram o percurso de analistas estrelas de Wall Street que transitavam para outras empresas. Concluíram que as estrelas se comportavam como cometas: o estrelato não se mantinha. Eis as razões:
- O desempenho da estrela depende significativamente do contexto em que trabalha, designadamente dos companheiros de equipa. Quando a estrela se transfere não leva consigo o contexto nem o conhecimento tácito nele presente.
- Quando a nova estrela chega à empresa, a mensagem veiculada aos colaboradores atuais é que a estrela é melhor do que eles e que eles jamais poderão alcançar esse estatuto. Os colaboradores mais leais sentem-se preteridos e desmoralizam. Acreditam que, para alcançar posições de liderança, terão que abandonar a organização.
- A estrela tem dificuldade em abandonar a “fórmula” que resultara na anterior empresa e em aprender a “fórmula” da nova organização.
- As estrelas não permanecem muito tempo na nova organização, apesar da choruda compensação. O investimento no seu estrelato não é, pois, rentabilizado.
Os investigadores extraíram a lição: é arriscado contratar estrelas no exterior, sendo mais apropriado desenvolvê-las internamente e retê-las. O insuspeito Jeffrey Pfeffer [9], consultor e professor na Universidade de Stanford, também argumentou que “a guerra pelos talentos é perigosa para a saúde da organização”. Do seu ponto de vista, a compensação faustosa das “estrelas da companhia” prejudica o trabalho de equipa e dificulta a aprendizagem e a disseminação das boas práticas. Gera sangria dos bons “jogadores de equipa”. As organizações que recrutam os melhores talentos podem tornar-se arrogantes. Por terem muitas estrelas, julgam-se imbatíveis. Mas acabam vencidas por organizações dotadas de pessoas determinadas e com forte espírito de equipa.
Líderes como multiplicadores de talento
Gerir “talento” é distinto de gerir “talentosos”. É possível que algumas pessoas nasçam com talento. Mas daí não decorre que o usem devidamente. Essas pessoas podem, aliás, tornar-se arrogantes, fracas jogadoras de equipa, excessivamente autoconfiantes, hiperotimistas e insensatas. Fábio Paim integrou a Seleção de Portugal sub-20 há mais de uma década. Dele disse Cristiano Ronaldo: “Se acham que eu sou bom, esperam até ver o Fábio Paim”. Mas o talento foi desperdiçado. Paim passou por três dezenas de clubes, sempre em queda. Reconheceu [11]: “O Cristiano Ronaldo é de outro mundo. Atualmente não pode haver comparação. No passado, sim. Se calhar, eu até tinha mais condições do que ele. Mas não tinha o que ele tem, que é a força, a vontade de ganhar, de ser aquilo que você quer ser. Porque ele é um jogador muito trabalhador e eu não tinha isso. Eu tinha a qualidade, se calhar até mais que ele, mas não tinha o resto. Preferia ter muito menos qualidade e ter a outra parte, aí sim, poderia ser um dos melhores do mundo. Mas ninguém nasce perfeito. Achei que só com o talento chegaria [ao topo], mas não”.
Este lado mais escuro de um diamante contrasta com o lado brilhante adquirido por “pedras brutas”. A determinação e a resiliência perante adversidades e fracassos podem compensar uma inicial falta de talento. Essa “garra” pode construir talento, mesmo no mundo empresarial. Os líderes são cruciais, tanto para potenciar talentos como para multiplicá-los. Os líderes multiplicadores de talento [13] podem ser assim caracterizados:
- Acreditam que o talento está por todo o lado, se manifesta de vários modos e pode ser cultivado.
- Procuram modos dos talentos de cada um ser aproveitados.
- Toleram os erros (honestos) e tomam-nos como oportunidades para aprendizagem.
- Atuam como “coaches” dos liderados.
- Capacitam os outros para operar com autonomia.
- Permitem que as pessoas obtenham resultados e recompensam-nas.
Implicações para a ação
Ao catalogarmos pessoas “especiais” como talentosas, incorremos no risco de, indiretamente, classificar as outras como desprovidas de talento. Essa decisão comunica uma mensagem: os “outros” não têm capacidade para chegar à bolsa de talentos. Esta mensagem declina a autoconfiança desses “outros”. Menor autoconfiança gera menor desempenho. Resultado: a profecia confirma-se! Este é, porventura, o pecadilho mais comum dos programas de gestão de “talentosos” – nos quais, aliás, ninguém se lembra de incluir colaboradores mais velhos. As empresas e os seus líderes podem tomar diversas medidas, e a mais importante é, porventura, a criação de oportunidades para que todos possam ser “estrelas”.
As estrelas nascem, sobretudo, da determinação, da dedicação e do desejo permanente de melhoria. Compreendem o papel da liderança de si mesmos, refletindo, buscando conselhos, usando mentores, deixando-se gerir [10]. O estrelato não é um dado – é um processo que permite alcançar níveis excelentes de desempenho[2]. O contexto conta. E as práticas de gestão e de liderança contam especialmente. Hierarquias e controlos apertados, equipas e líderes que matam o mensageiro da má notícia, práticas de gestão e liderança que impedem as pessoas de fazerem o que sabem fazer melhor (imagine o que ocorreria ao talento do CR7 se o obrigassem a jogar como defesa) – eis o que inibe ou destrói o talento. Paradoxalmente, criar bolsas de talentos pode destruir (ou desaproveitar) muito talento.
Exemplos de práticas que podem fomentar desempenhos estrelares[1]
- Crie oportunidades para que todos possam ser estrelas.
- Adote políticas abertas e justas.
- Remova obstáculos.
- Permita que as estrelas rodem por várias equipas (para contagiarem).
- Proporcione formação e desenvolvimento para que as estrelas sejam ainda melhores.
- Use as estrelas como fontes de mentoria e “coaching”.
- Retenha as estrelas em vez de cortar a direito em processos de “downsizing”.
- Adote sistemas transparentes de compensação baseada no desempenho.
- Adote práticas criativas que vão ao encontro das idiossincrasias dos indivíduos.