Autor: Mário Ceitil, Presidente da APG (Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas)
Tal como é costume afirmar-se que “há males que vêm por bem”, podemos sugerir, por extensão, que há situações que, por serem tão aberrantes e negativas (“males”), acabam por nos ajudar a ter uma perceção mais clara de certas realidades (“bem”).
Aplica-se isto, entre muitas outras coisas, à situação dos líderes narcisistas que, em vez de serem “um bem que nunca acaba”, como deveria acontecer com quaisquer líderes “que se prezam”, tendem a ser, ao contrário, “um mal que sempre dura”.
De todos os agentes tóxicos que uma organização (ou uma sociedade) abundantemente fabricam, os líderes narcisistas pertencem à categoria dos mais insidiosos e perigosos, e isto por várias razões:
- Conseguem, em geral, ostentar uma aura sedutora e encantatória que facilmente ilude aqueles com quem contactam e trabalham, levando os outros a sentir que são “obras de arte” os feitos muitas vezes aberrantes e inapropriados que eles próprios praticam;
- Distorcem a realidade através de narrativas, fantasias, ideais, pensamentos e imagens que criam mapas cognitivos e afetivos de um mundo desenhado exclusivamente à imagem e semelhança dos seus próprios desejos mais profundos e objetivos egocêntricos;
- São mestres do “autoengano”, construindo de si próprios uma tal imagem de força e de infalibilidade que, quando confrontados com situações efetivas de desaires ou fraquezas, facilmente as disfarçam inventando demonstrações aparentemente plausíveis e convincentes de que o erro “é do outro”;
- Finalmente, insinuam nos outros a imagem de serem eles próprios de tal modo perfeitos que conseguem por vezes criar à sua volta comunidades de fiéis seguidores, sobretudo em pessoas tendencialmente mais amorfas e dependentes, que apenas se sentem “como gente” quando se acham bafejadas ou abrangidas pelas indulgências do líder.
Este “espécimen” de liderança, menos raro do que se possa supor, vive no interior de uma permanente fantasia de espetáculo, recriando nos outros um complexo jogo de máscaras, cada uma representando uma faceta da sua própria autoimagem. Por isso, quando interage com os outros, vê sempre a sua própria imagem refletida em espelho, evidenciando, tipicamente, uma total ausência de empatia e notória incapacidade de detetar e compreender aquilo que os outros pensam ou sentem.
Em boa verdade, os outros representam, para eles, apenas a paisagem fantasmática onde recriam os seus delírios megalómanos de se sentirem alguém (muito) especial.
Dir-se-á, e com razão, que o narcisismo é uma patologia da personalidade que, obviamente, não é exclusiva dos líderes. O que é mais grave é que, como refere Kets de Vries, “os narcisistas que alcançam uma posição de liderança podem gerar efeitos e deixar marcas muito negativas nas suas organizações”.
Não se pense, todavia, que por ostentarem uma autoestima exacerbada, os líderes narcisistas são todos dotados de níveis elevados de autoconfiança. Pelo contrário, muitas destas pessoas, sobretudo aqueles que são designados por Kets de Vries como “narcisistas reativos”, são profundamente inseguros e com uma estrutura de identidade pessoal bastante fragmentada, razão aliás que os leva a sentir habitualmente uma enorme necessidade de aprovação e de feedback positivo por parte dos outros. No entanto, no universo concentracionário das suas fantasias megalómanas, desenvolvem, por contraponto aos seus sentimentos de insegurança, um sentido exagerado de auto importância e de grandiosidade, mal disfarçando a sua necessidade obsessiva de admiração.
Na interpretação de orientação analítica de Kets de Vries, os “narcisistas reativos” continuam, em adultos, a comportarem-se como crianças, reivindicando constantemente atenção e tratamento especial. Como, na sua fantasia de grandiosidade, sentem sempre que não lhes dão a atenção de que se acham merecedores, tornam-se profundamente egoístas e são frequentemente dominados por sentimentos de inveja, despeito e ganância que, por sua vez, alimentam um furtivo mas tenaz e permanente apetite de vingança.
Por tudo isto, propomo-nos aqui incluir esta tipologia no topo da escala dos agentes tóxicos de uma organização.
Eles não são difíceis de identificar e o leitor já estará possivelmente a pensar em alguém, próximo ou distante, que facilmente poderá ser incluído nesta categoria. No entanto, devido à sua capacidade de sedução, os líderes narcisistas podem manter o seu jogo de manipulações durante muito tempo, montando uma rede complexa de relações e de dependências, difíceis de desmontar e, consequentemente, delas se libertar.
O grande choque é quando se rompe “o manto diáfano da fantasia” e a consciência desperta para a amarga e dura realidade de constatar que uma pessoa, um grupo, uma organização ou uma sociedade inteira têm sido, foram, ou ainda são, apenas e só instrumentos da vontade indómita de alguém movido por um egoísmo sem escrúpulos e por uma intencional e insidiosa estratégia de manipulação sem culpabilidade.
E o grande risco – e quando esse alguém é uma pessoa investida de muito poder, o risco é mesmo muito grande – é que esse despertar da consciência, embora sempre oportuno e muito necessário, possa, todavia, vir já demasiado tarde.
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REFERÊNCIAS
KETS de VRIES, M. (2006). The Leader on the Couch. San Francisco CA: Jossey-Bass