Autor: Mário Ceitil, Docente convidado do ISCTE/Executive Education e Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG
Como todos nós, ao longo da nossa vida, já fomos sujeitos a muitos processos de Avaliação de Desempenho, com este nome ou com outras designações, estamos todos em boa posição para avaliar os impactos e as respetivas consequências que as avaliações que outros fizeram sobre nós, tiveram no decurso das nossas vidas.
Uns dirão que certas avaliações a que foram sujeitos lhes permitiram dar um “step ahead” a nível da sua autoconsciência e realizar progressos significativos na sua maturidade pessoal e profissional. Outros, pelo contrário, dirão que viveram experiências extremamente traumatizantes e que provocaram mesmo alguma regressão das suas capacidades profissionais e pessoais.
Compreender estes dois grupos de experiências avaliativas e distinguir o que verdadeiramente os diferencia, será seguramente uma das contribuições mais relevantes que a Gestão das Pessoas pode dar para a promoção de uma maior justiça, motivação e dignidade nas relações entre os líderes e as suas equipas e colaboradores.
A questão não é, obviamente, fácil, nem pelo lado técnico, nem pela complexidade dos fenómenos humanos que estes processos convocam. Mas a continuidade das práticas avaliativas e a permanente pesquisa sobre novas formas e modelos de Gestão do Desempenho, atestam bem a crescente importância que estas práticas têm para o progresso das empresas, para o desenvolvimento das pessoas que nelas colaboram e para a criação de um clima organizacional marcado por sentimentos de bem-estar e de confiança.
E é precisamente esta última, a confiança, ou a falta dela, que marca a diferença entre uma “avaliação antropófaga”, que mina as bases da autoestima do avaliado e lhe reduz drasticamente as margens de manobra, transformando-o num mero recetáculo passivo das determinações do seu chefe, e uma avaliação “antropogénica”, que permite ao colaborador ter uma participação ativa no processo de construção da sua identidade profissional e tomar decisões que lhe permitam ser protagonista da sua própria carreira.
Dir-se-á que, com a extraordinária evolução das mentalidades de gestão e liderança que têm caracterizado as primeiras décadas do séc. XXI, já não existem (ou são, pelo menos, muito pouco frequentes) essas “avaliações antropófagas”. Se assim for, ficaremos todos seguramente muito felizes. Mas o problema é que quem trabalha nas e com as organizações tem ainda registos da sobrevivência de práticas de avaliação muito pouco recomendáveis, com consequências muito negativas no bem-estar das pessoas e na produtividade das organizações.
É caso para dizer, cotejando uma frase muito conhecida: “Eu cá não acredito em ‘avaliações antropófagas’; mas que as há…há”!
Voltemos à confiança e às razões que a levam a ter um papel tão determinante nas relações de avaliação. De acordo com Stephen M.R. Covey , a Confiança é “aquela coisa que muda tudo” (the one thing that changes everything”(1) e resulta numa das “mais poderosas formas de motivação e de inspiração”.
A relação que estabelecemos com uma pessoa que nos inspira confiança é natural e espontânea, porque assenta no sentimento que experimentamos de não existir ameaça externa, de que não existem forças ocultas que podem pôr em causa a nossa integridade física e emocional. A relação torna-se clara, porque sentimos que, mesmo em situações difíceis, a pessoa que merece a nossa confiança está ali também “para nós”, e não procura aproveitar-se de nós ou manipular-nos para finalidades que apenas a si própria interessam.
Assim, quando, nos processos de avaliação, recebemos feedback de alguém que nos merece confiança, a nossa reação ao feedback será tendencialmente positiva e poderemos encará-lo de uma forma mais tranquila e sem grande ativação dos nossos mecanismos de defesa. E isto pode acontecer mesmo nas situações em que o feedback é negativo, porque acreditamos que ele está a ser emitido com “boa intenção”.
Ao estabelecer um contexto em que tanto o avaliador como o avaliado estão orientados para finalidades que respeitam aos interesses de ambos e não apenas a uma das partes, estão criadas condições que favorecem uma maior disponibilidade para um “insight” mais completo por parte do avaliado, que será posteriormente a condição essencial para que esse avaliado possa tomar algumas medidas e mobilizar comportamentos de melhoria do seu desempenho.
A situação será, todavia, completamente diferente quando não existe confiança entre as partes, podendo a relação redundar muito mais numa espécie de “jogo de forças”, em que o resultado que se obtém é aquele que é característico dos” jogos de soma nula”, em que os ganhos de um são obtidos à custa das perdas do outro.
Mesmo que não haja, por parte de um avaliador, uma intenção declarada em pôr o seu colaborador em causa, se esse colaborador não sentir confiança no avaliador, a relação avaliativa correrá sempre o risco de não produzir os efeitos que seriam desejáveis, ou seja, que tanto o avaliador como o avaliado pudessem aproveitar o potencial da situação para cada um deles aperfeiçoar as suas respetivas competências profissionais e pessoais.
A ausência de confiança pode radicar também no facto de alguns avaliadores se considerarem em excesso como “reliable raters of others” e se assumirem como as únicas “fontes de verdade” no processo, minimizando e desqualificando a perspetiva dos avaliados relativamente à sua própria performance. Mas, como é referido num conhecido estudo publicado em 2019 pela HBR, (2) o mais provável é que aqueles que avaliam (ou seja, todos nós) em vez de sermos uma “fonte de verdade”, somos muitas vezes uma “fonte de erro”, porque o feedback que damos aos outros “is always more you than then”, o que conduz à possibilidade de praticarmos erros sistemáticos na avaliação.
Os quase inevitáveis enviesamentos dos juízos avaliativos, resultantes desta tendência de “projeção” pessoal quando avaliamos, leva-nos a forjar “teorias implícitas” sobre a performance e, mais perigosamente, sobre o caráter dos outros, através desse famigerado “erro de avaliação” conhecido como o “efeito de halo” ou “efeito de aura”.
Para conseguirmos aproveitar realmente o imenso potencial de uma relação avaliativa, é fundamental então que os avaliadores aperfeiçoem as suas competências como “pessoas confiáveis”, e procurem evitar os possíveis enviesamentos cognitivos que podem resultar de avaliações feitas com base em juízos abstratos e apriorísticos sobre as pessoas que avaliam.
Os processos de avaliação são sempre complexos, mesmo que a sua arquitetura formal seja “o mais simples possível”. Porque estamos a lidar com pessoas, e porque essas pessoas têm sentimentos, conceções sobre si próprias e sobre os outros e têm direito a serem envolvidas em decisões que dizem respeito às suas carreiras e às suas vidas.
Neste sentido, avaliar alguém, sobretudo quando essa avaliação tem consequências diretas e concretas na vida quotidiana da pessoa, é mais, muito mais do que apenas um exercício técnico ou uma ação de mediação de um poder formal: avaliar é de facto um verdadeiro imperativo moral.
Por isso, em vez de termos avaliadores que não se coíbem de fazer avaliações abstratas e dogmáticas do caráter dos outros, o que é de facto essencial é termos muitos avaliadores que avaliem os outros…com caráter.
Referências:
COVEY, S. M.R. (2006). The Speed of Trust. London. Simon & Schuster
BUCKINGHAM, M. & GOODALL, A. (2019). The Feedback Fallacy, HBR, March-April, 2019.