Conhecida por todos, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é uma instituição com 522 anos de história, várias áreas de atuação e cerca de 6 500 colaboradores.
Nesta organização, a missão de ajudar o próximo é vivida diariamente não só externamente, nos serviços prestados, como também do ponto de vista interno. À RHmagazine, Pedro Jorge Silva, diretor de recursos humanos da SCML há cerca de dois anos, dá a conhecer algumas boas práticas de gestão de pessoas da organização, que incluem uma aposta clara na formação e uma forte política de mobilidade interna, práticas essas que muitas vezes se cruzam, contribuindo para cerca de 2 500 movimentos internos por ano, entre novas contratações, mobilidades funcionais, reclassificações e substituições temporárias.
Nesta entrevista, o responsável fala ainda do processo de reestruturação do departamento de recursos humanos, que encabeçou poucos meses depois de ter entrado na SCML, e que, sendo parte integrante do processo de transformação digital que está em curso na instituição, visa tornar os processos menos burocráticos e mais ágeis, permitindo assim a evolução de carreira de colaboradores.
FB: Como está a ser o desafio de liderar os recursos humanos de uma instituição como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa?
PJS: É um desafio diário e constante. Vai fazer dois anos, em novembro, que aqui estou. A SCML, como costumo dizer, tem tanto de desafiante e disruptivo como de gratificante. Temos 522 anos de história, portanto, é natural que existam perspetivas e práticas de gestão resultantes de mindsets distintos. Há, portanto, todo um manancial de história que tem de ser gerido, sem nos desgarrarmos do passado, mas pensando no futuro. Temos de olhar sempre em frente, porque estão constantemente a ser postos desafios à SCML e porque a SCML tem, na sua própria vivência do dia a dia e gestão diária, uma responsabilidade social acrescida relativamente às demais instituições que conhecemos. Tem a particularidade de ajudar o próximo, estar focada nas pessoas que mais precisam.
Além da necessária gestão de aproximadamente 6 500 pessoas, temos uma equipa de recursos humanos, com 113 pessoas, que dão apoio transversal às diversas áreas e serviços da SCML.
Na SCML, além do conforto das palavras e do ordenado ao final do mês, damos importância ao reconhecimento e apoio adicional em situações críticas que carecem de apoio de diversa ordem, por forma a capitalizar o mais possível a nossa capacidade de atração e retenção. Nesta vertente, a SCML tem uma sensibilidade acrescida, ao nível dos apoios sociais, financeiros e de saúde, entre outros.
Pegando num exemplo de outra boa prática dentro da SCML, reitero uma prática reconhecida por todos os colaboradores, pelo menos aqueles que têm a intenção de recorrer a essa política de benefícios, que é o apoio à formação por iniciativa dos próprios. Ou seja, a SCML premeia os colaboradores, com apoios a “custo zero”, que, por vezes, já em fase adulta com filhos e famílias constituídas, possam ter outras prioridades financeiras, e que de outra forma estariam impossibilitados de tirar uma licenciatura, acabar o mestrado ou doutoramento.
Qual é a adesão a essa iniciativa?
Desde 2018, com particular reflexo nos próximos dois a três anos, estamos a apoiar um total de 156 colaboradores. Estamos a falar assim de um considerável número de trabalhadores que recorrem a este tipo de apoio, implicando um investimento de centenas de milhares de euros. Isto é considerado como um dos benefícios mais valorizados na SCML, porque nem todas as instituições ou empresas têm essa sensibilidade. É uma forma de reconhecer as pessoas que trabalham na SCML, mas também uma forma de possibilitar a progressão e promoção dos nossos colaboradores.
Para além disso, temos uma política de recrutamento que assenta num princípio base: a valorização dos recursos humanos internos. Recorremos sempre, de há uns anos a esta parte, e em primeira linha, à mobilidade interna de colaboradores. Claro que isto gera fluxos de rotação entre equipas que para nós também são um desafio diário. Ou seja, estar constantemente a “repor” colaboradores que evoluíram na carreira ou que foram alocados a outros desafios e outras áreas, porque tiraram um curso, ou porque querem ter uma nova experiência de trabalho na SCML. Neste âmbito, a SCML também se revela atrativa, na medida em que beneficiamos da vantagem de termos diversas áreas de atuação.
Temos um potencial de evolução dentro da SCML que é uma realidade que poucas instituições ou empresas podem ter. Utilizando uma linguagem de gestão, não temos um “core business”, temos várias áreas e interesses de atuação. Posso iniciar a minha relação laboral com a SCML numa área e acabar numa área complemente distinta, face ao meu percurso profissional inicial. Nós fomentamos muito essa política de mobilidade e reclassificação profissional das pessoas, com base na iniciativa dos colaboradores e chefias e de acordo com as necessidades operacionais que vão surgindo.
Quando surge uma oportunidade para essa evolução se concretizar, a divulgação interna é desencadeada pelos canais próprios, por forma a existir uma difusão transversal das oportunidades. Não obstante, os colaboradores candidatos são submetidos a todo um processo de avaliação – análise de perfil, entrevistas, testes, entre outros – por forma a termos as pessoas certas nos lugares certos.
Porém, tais mobilidades internas geram aquilo que, em gíria interna, nós designamos a lógica do carrossel. Vai-se ocupar uma posição, a posição anterior fica “descoberta” e, caso exista necessidade de reposição com novas pessoas, desencadeia-se outro processo interno. Assim, um processo de recrutamento poderá desencadear uma série de recrutamentos em cadeia, devido às sucessivas necessidades de reposição.
Só quando não encontramos ninguém internamente com o perfil para ocupar determinada posição é que recorremos ao recrutamento externo. Pontualmente, para o preenchimento de determinadas posições, relativamente às quais já sabemos que teremos dificuldade em encontrar competências internas, recorremos em simultâneo ao recrutamento interno e externo.
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Isso faz com que as pessoas permaneçam mais tempo dentro da organização?
Sim. É uma forma de retenção, na medida em que as pessoas têm a perceção de que dentro da SCML têm uma potencial oportunidade de evolução. Claro que isto, por vezes, tem o efeito perverso das pessoas assumirem tal possibilidade como uma realidade automática, expetativas estas que também têm de ser geridas com o devido enquadramento relativamente às oportunidades existentes.
Vamos gerindo dentro do possível, e de acordo com as necessidades e possibilidades da SCML, todas essas movimentações. Isso, por si só, é um desafio diário e constante para a nossa equipa de gestores e direções de unidade, a quem diariamente damos apoio. Dentro desta lógica de movimentações – reclassificações, ingresso de pessoas, conversão de contratos de substituição em contratos sem termo – estamos a falar de cerca de 2 500 processos internos, que se traduzem em cerca de 60 processos por semana. Isto permite ter uma noção da dimensão e do volume de trabalho que os recursos humanos têm apenas no que aos processos de recrutamento e contratação diz respeito. Por seu turno, é desencadeada uma série de outros processos inerentes à gestão do ciclo de vida de um colaborador da SCML, nomeadamente, nas áreas da formação, saúde ocupacional, apoio social, payroll, reporting interno e externo e áreas de gestão de processos, com vista a otimizar toda a gestão de RH.
Pouco tempo depois de chegar à SCML, iniciou uma reestruturação na forma como os RH estavam organizados. O que viu que o fez concluir que era necessário mudar?
Para começar, senti um enorme “peso” administrativo e excesso de papel. Essa foi logo a minha primeira perceção. Temos uma carga burocrática grande, que temos procurado desmaterializar a par e passo. Outro desafio que tive, e com a intenção da reorganização dos RH, foi precisamente otimizar e tornar cada vez mais sincrónicas as áreas de RH, ou seja, criar bases de dependência que muitas vezes não eram percecionadas.
As mudanças que tive de operar nos recursos humanos foram no sentido da consolidação de um espírito de corpo/equipa, e de perceção de que, se algo correr mal para uns, correrá – direta ou indiretamente – mal para todos. Contudo, se todos nos envolvermos nos processos, as vitórias são também de toda a direção de recursos humanos, sem prejuízo do reconhecimento do mérito e contributo individual de cada um.
A intenção da restruturação visou dar resposta à necessidade de tornar os processos menos pesados, mais ágeis e de sistematizar melhor os fluxos de informação entre as áreas da direção de recursos humanos. Portanto, todos temos de estar “na mesma página” e pensar transversalmente independentemente das áreas de atuação onde temos responsabilidades.
Estamos também a falar de mudanças comportamentais, não é?
Exatamente. Isso teve de ser gerido e é um desafio que se deve manter constante. Em paralelo, o intuito de estimular a própria capacidade de adaptação e agilidade dos próprios recursos humanos é uma meta a atingir diariamente, ou seja, estarmos cada vez mais ecléticos em termos de gestão. Claro que isto não se faz de um dia para o outro, e muito menos se faz em seis meses, ou num ano, ou em dois anos. É um processo que tem de ser alimentado e gerido diariamente. Na enorme estrutura que é a SCML, quando pensamos em fazer qualquer alteração, temos de começar a pensar “lá atrás” com a devida antecipação, no sentido de calcular uma série de detalhes, para que as alterações ocorram da forma mais eficiente possível e com o menor grau de imprevistos – o que, no presente contexto de ambiguidade e complexidade, se torna um complexo desafio em termos de planeamento.
A SCML tem um propósito e uma missão muito particular, milhares de colaboradores e diferentes áreas de atuação. Como é que mantêm todas as pessoas alinhadas?
Quando falamos de chavões como “missão” e “cultura”, na SCML, vive-se essa missão e essa cultura, de facto, porque tem rosto e vida. Nem é preciso estar cá dentro. Quando ouvimos falar de SCML, associamos a uma missão que é virada para os outros e para a ajuda ao próximo (aos que mais precisam), e essa missão acaba por ser vivida dentro da SCML de forma muito intensa, em tudo o que fazemos. Todos trabalhamos com esse espírito e estamos incluídos, envolvidos e implicados nessa missão, porque sabemos que a SCML tem esse peso e essa resiliente missão presente na sociedade. Isso é o que nos motiva e alinha na permanência na SCML, dando-nos orgulho e sentimento de pertença a esta singular instituição.
Passámos por um período muito crítico. O período de confinamento levou-vos de algum modo a refletir sobre forma como a organização está estruturada?
Fomos forçados a repensar de forma ágil e eficaz, assumindo novas formas de trabalho, sem prejudicar a atuação da SCML, num período tão sensível e incerto para a comunidade em geral, revelando uma grande resiliência e abnegação, por parte dos trabalhadores, em prol da prossecução da nossa missão.
No que diz respeito aos hospitais e ação social, também os recursos humanos, em conjunto com as áreas operacionais, tiveram de repensar políticas de reconhecimento, diferenciação e estratégias de segurança, relativamente àqueles que estivam na “linha da frente”. Tudo teve de ser repensado.
Mas, na essência, faz sentido repensar, de forma mais resiliente no tempo, a forma como desenvolvemos o trabalho no dia a dia. Tivemos de nos adaptar tecnologicamente e em tempo record. Foi um esforço enorme colocar milhares de pessoas em regime de teletrabalho.
Falou em políticas de reconhecimento para as pessoas que estavam na primeira linha. Do que se tratou concretamente?
Em termos retributivos, foram tomadas medidas que visaram compensar o esforço adicional e a exposição ao risco das pessoas que permaneceram na primeira linha de atuação.
Nós tivemos essa capacidade e cuidado, sendo de louvar o esforço imprimido pelos colaboradores que, no seu dia a dia de trabalho, mantiveram a SCML a funcionar, não prejudicando todos aqueles que recorrem a esta instituição e que a consideram o seu “porto de abrigo”.
[Entrevista por Flávia Brito, publicada na RHmagazine, edição 130 de setembro/outubro de 2020]
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Pedro Jorge Silva
DRH da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Iniciou carreira na consultora de RH Adecco, como responsável administrativo. Depois foi DRH na Air Luxor e na Parmalat Portugal. Mais recentemente, assumiu a direção de uma unidade de negócio RH na Geoban (pertencente ao Grupo Santander) e, depois de cerca de oito anos e meio, como DRH da Universidade Católica, mudou-se para a SCML.