Autor: José Augusto Santos, Sociólogo, especialista em gestão de pessoas e desenvolvimento organizacional e quadro superior da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros
São vários os momentos que podem assinalar o início de um futuro. Por vezes, o futuro nasce do trabalho inspiracional manifestado, por exemplo, na produção artística. Outras vezes, o futuro decorre da combinação das dinâmicas geradas na sociedade, sendo depois concretizado por via do processo de construção de conhecimento.
De qualquer forma, o futuro é quase sempre uma ideia que oferece inquietude pela incerteza que lhe está associada. Por isso mesmo é bem provável que este texto possa gerar algum desassossego à medida que vamos avançando num ensaio que, sendo prospetivo, apenas pretende caracterizar parte do que serão as dinâmicas às quais estaremos ligados, uma boa parte das nossas vidas.
Kurt Lewin, psicólogo social alemão nascido ainda no século XIX afirmou que “não há nada mais prático que uma boa teoria”. Foi com base nesta premissa que desenvolvemos as linhas que se seguem, ancorando a análise na perspetiva organicista de funcionamento dos sistemas sociais.
O “Organicismo” refere-se a uma teoria filosófica e sociológica que conheceu a luz do dia no século XIX e que, na essência, se refere à comparação da sociedade a um organismo vivo. Para os organicistas, no conjunto da sociedade, cada pessoa, cada grupo, cada instituição, assume uma função que é única e essencial ao funcionamento da sociedade e cada elemento contribui para o equilíbrio e para a subsistência do todo . Herbert Spencer (1870), talvez o principal precursor do organicismo, afirma que as sociedades são equivalentes a uma forma avançada de organização biológica. No organicismo sociológico ou darwinismo social como alguns apelidam, os indivíduos, as organizações, equivalem a células que cumprem funções específicas respeitando regras e leis comuns, aplicáveis a toda a sociedade, entre estas a lei da “sobrevivência do mais apto”.
Também no século XIX, Charles Darwin, naturalista britânico, propunha a teoria da evolução biológica na referencial obra “A origem das espécies’” (1859), onde oferecia provas concretas que explicavam o seu processo de evolução. Chamou-lhe de “seleção natural”, afirmando que “as espécies que sobrevivem não são as espécies mais fortes, nem as mais inteligentes, mas sim as que se adaptam melhor às mudanças”.
Não deixa de ser curioso que a reflexão sobre as organizações do futuro que aqui pretendemos apresentar recorra a estas duas teorias, apresentadas há mais de 100 anos, dando assim provimento à velha máxima segundo a qual, conhecendo o passado, poderemos mais facilmente compreender o presente e antecipar o futuro.
Temos bem identificadas as complexidades do tempo em que vivemos, a volatilidade, a incerteza, as contradições e a ambiguidade das sociedades atuais e prevemos que parte substancial dos desafios que nos serão colocados no futuro decorrem, direta ou indiretamente, das mudanças que irão ocorrer nas organizações, independentemente da sua natureza.
A hipótese que adotamos para esta reflexão é a seguinte: tal como nas teorias da biologia ou das espécies, que se transpõe para a análise das estruturas sociais, incluindo nestas as organizações, o fator que determinará a sobrevivência será a capacidade de adaptação às mudanças induzidas pelo contexto em que atuam.
Assim, tal como na teoria evolucionista social de Herbert Spencer, ou evolucionista das espécies de Darwin, antevemos que apenas as organizações que manifestarem maior capacidade de adaptação às mudanças acabarão por sobreviver.
A estrutura “celular” das organizações é composta por uma multiplicidade de elementos, dos quais se destacam as culturas organizacionais, normas, processos, sistemas de informação, fluxos de pessoas, de talentos e relações de poder. Este conjunto de elementos, que representam os órgãos e as funções biológicas das organizações, é hoje desafiado a responder a um crescente ritmo de mudança e, portanto, de adaptação.
Novas formas de organização e de trabalho têm vindo a ser testadas, num processo acelerado pela (r)evolução tecnológica e mais recentemente pela pandemia, fenómenos que vieram colocar em crise um conjunto de axiomas que tínhamos por adquiridos.
As alternativas ao trabalho presencial, os fenómenos como a great resignation ou o quiet quitting, o nomadismo digital ou a nova centralidade atribuída à conciliação entre a vida profissional, social e familiar, são apenas alguns dos exemplos do que falamos. Mas as mudanças vão muito além. Passamos a encarar os setores de atividade como ecossistemas e as hierarquias organizacionais perdem progressivamente relevância, tanto mais que o trabalho mais complexo é agora realizado em rede. Mais importante do que saber “para quem se trabalha”, importa conhecer “com quem se trabalha”.
É certo que no dia a dia nem sempre temos a noção de que estamos a viver um tempo único e que o futuro passa por nós a toda a hora, sem que lhe prestemos especial atenção.
No campo das organizações, note-se que, segundo um relatório da Delloite (Global Human Capital Trends 2022), o design organizacional chegou ao topo da lista das prioridades do mundo empresarial, assumindo-se como uma das tendências mais relevantes na agenda atual. Nem sempre temos consciência destas mudanças, sobretudo porque esta realidade convive com a existência de organizações que continuam a operar de forma acentuadamente anacrónica.
Entretanto, à medida que as organizações se tornam mais imateriais, porque mais digitais, aumenta a urgência de redesenhar não só os modelos de funcionamento organizacional, como o papel das pessoas e a relação destas com estes novos ecossistemas, híbridos, complexos e tendencialmente despersonalizados.
O design organizacional, quando realizado de modo informado (sem a herança do “achismo” que ainda prevalece), é um trabalho complexo. Projetar as organizações para atuar na complexidade, preparando-as para o futuro, é um projeto por isso mesmo desafiante, contínuo, dinâmico e, de certa forma, interminável. Consideramos no entanto que as organizações que verdadeiramente assumam e enfrentem este desafio serão as únicas recompensadas com o prémio da relevância e da sobrevivência, tal como na teoria das espécies.
O modelo até agora predominante centra a avaliação das organizações sobretudo em critérios de eficiência e eficácia, atuando em cenários com horizontes de 3, 5 ou 10 anos, onde a perspetiva da mudança surgia num horizonte distante, longe de produzir qualquer ameaça. Ao contrário, neste novo tempo, as componentes de eficiência e de eficácia mantêm-se, tendo no entanto perdido o exclusivo da centralidade. A velocidade de ação (antecipação), a agilidade na produção de pensamento crítico e de criatividade responsiva e a adaptabilidade das respostas a novas questões passarão a ser uma constante nas organizações sobreviventes.
A “nova gestão de pessoas”- o poder do trabalho colaborativo em rede
Uma parte importante do design para a mudança está na alteração da organização do trabalho, em que evoluiremos das clássicas estruturas organizacionais hierárquicas e rígidas para modelos em que o trabalho é realizado por equipas, em rede(s) e de forma colaborativa.
A especialização numa única área arriscará a tornar o trabalhador obsoleto. Na gestão do percurso, já não bastará à aprendizagem ser contínua. Esta terá de ser evolutiva, multitemática e claramente incremental no domínio das soft, das hard e das powerskills.
Os sistemas de trabalho irão incentivar as equipas e os indivíduos a partilhar informação de forma transparente e colaborativa. Tendencialmente, as equipas deixarão de estar integradas em unidades orgânicas e passarão a ser alocadas em função de projetos ou programas. Os silos organizacionais terão os dias contatos.
Para responder à determinante da agilidade, será comum a rápida formação, dissolução e recomposição das equipas, assim como a pertença dos trabalhadores a várias equipas em simultâneo, onde poderão mobilizar saberes e competências distintas, ao mesmo tempo que desenvolvem novas aprendizagens em contexto real.
A “nova gestão de pessoas”, num contexto de elevada complexidade e exigência, não se coadunará com visões definhadas sobre a realidade e centradas na intendência do dia-a-dia. Pelo contrário, a “nova gestão de pessoas” far-se-á incorporando o papel de (re)engenharia social através do qual se espera que o gestor saiba ler o contexto, analisá-lo numa perspetiva crítica e propor soluções competentes para responder ao catálogo de desafios em constante mudança. Os tempos de trabalho e de lazer conhecerão novas formulações e conceções.
À medida que o futuro se vai revelando novas frameworks são desenvolvidas no sentido de consolidar as perspetivas que aqui se apresentam. A Organizational Network Analysis (ONA), p.e., é uma tecnologia através da qual se produzem dados para análise sobre as redes sociotécnicas que funcionam dentro de uma organização, permitindo a criação de modelos estatísticos sobre as pessoas, as tarefas que executam, os grupos nos quais interagem, sobre os seus conhecimentos e recursos no âmbito do contexto organizacional, permitindo gerar equipas para um rendimento excecional.
As práticas atuais que boicotam o tempo de trabalho de concentração e criação (reuniões improdutivas, tarefas administrativas inúteis, p.e.), tenderão a esbater se até à irrelevância. Afinal o tempo, esse bem precioso, deve ser direcionado para aquilo que será verdadeiramente fundamental.
Ainda no campo da gestão de pessoas, será de prever que a adoção de novos modelos organizacionais seja acompanhada da criação de novos modelos de liderança. O exercício da liderança deverá cada vez mais afirmar-se num contexto específico de projeto e menos com assunção de estatuto por via da legitimação conferida por cargos ou posições, na medida em que a volatilidade e flexibilidade das equipas poderá determinar que se seja simultaneamente líder no “projeto A” e liderado no “projeto B”. Esta realidade irá convocar novos requisitos para as lideranças, incorporando cada vez mais a experimentação, a inovação e o design thinking, centrando toda a ação a partir da perspetiva do cliente, seja este interno ou externo. Olhe à volta: está perto ou longe deste novo paradigma?
Em qualquer caso, características como o pensamento crítico e sistémico, a inteligência de rede, a negociação e a empatia estarão previsivelmente no topo das competências associados à responsabilidade de liderar.
Acreditamos ainda que, embora as métricas de desempenho e as metas sejam fatores a reforçar, a avaliação do desempenho terá necessariamente de abandonar a contradição de ser individual e competitiva enquanto apregoa o espírito de equipa e a cooperação. Assim, será provavelmente declarada a obsolescência dos atuais modelos, passando a privilegiar-se a avaliação por unidades de negócio ou por equipas, mas sempre negando uma lógica de competição intraorganizacional.
Podemos começar o futuro…Ontem!
Cada um de nós poderá encetar o seu próprio processo de futuro, implementando ou influenciando a implementação de alguns passos. Mais importante do que a grandeza do passo que se dê será a convicção que este será dado na direção certa. E estas propostas, acreditamos, vão nesse sentido:
- integrar progressivamente as funções de Design Organizacional nas áreas de gestão de pessoas;
- incrementar práticas de people analytics de modo a obter elementos de suporte ao desenho estratégico e à decisão competente porque informada;
- mudar os sistemas de avaliação de desempenho incorporando modelos que privilegiem o trabalho colaborativo, em rede e a corresponsabilização para os resultados;
- adotar a perspetiva do cliente, seja ele interno ou externo. Perceber o valor que devemos gerar de forma a responder concretamente às necessidades que importam satisfazer;
- assumir a mobilidade do talento como crucial. Mudar de equipa, de projeto, de tarefa ou até de organização é fundamental para “ganhar mundo” e manter o ânimo necessário para acolher a mudança;
- olhar para as oportunidades geradas pela tecnologia, aproveitando as potencialidades já disponíveis e incorporando o fator tecnológico no redesenho dos processos de trabalho;
- criar oportunidades e dinâmicas internas que valorizem as pessoas e a sua relação com o trabalho, potenciando o talento individual. Cuidar das pessoas é também conhecer e superar as suas expetativas e quando assim for, a retenção de talento não será uma intenção, mas uma conquista própria das organizações verdadeiramente bem-sucedidas;
- finalmente, aceitar de braços abertos a velocidade da mudança. Ter consciência que a “onda” vem. Ou “entramos na onda”, ou seremos vítimas dela.
São inesgotáveis os contributos que cada um poderá acrescentar no complexo mundo das organizações e dos sistemas sociais, nesta grande oportunidade que é contribuir para a construção do futuro. Portanto, se como afirmou Albert Camus “a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”, estará na hora de começar. Vamos ao trabalho!
O teor do presente artigo vincula apenas as opiniões e posições do autor, não representando qualquer instituição a que se encontre vinculado.