Cumpridos que se encontrem os requisitos exigíveis para que um trabalhador possa, querendo, desencadear a sua reforma antecipada, este é livre de promover o competente processo. Ora, foi precisamente isso que o trabalhador – chamemos-lhe Duarte – entendeu fazer em 2019.
A legislação alterara recentemente, tendo passado a ser possível, em 2019, beneficiar de um regime especial de reforma antecipada por flexibilização da idade e sem penalização, aplicável a trabalhadores que aos 60 anos idade tenham, pelo menos, 40 anos de carreira contributiva registados.
Duarte cumpria tais condições, pelo que decidiu avançar com o respetivo processo.
Desde há cerca de 35 anos, que Duarte – contabilista e técnico oficial de contas de profissão – assessorava, precisamente nessa área, o Grupo empresarial “ORIGIN” (chamemos-lhe assim, por simplificação), na qualidade de seu trabalhador subordinado.
Grupo de matriz nacional, integrando 3 sociedades distintas a laborar no ramo da indústria, o mesmo sempre contou, de forma contínua, com o inestimável – e diríamos, (quase) insubstituível – contributo profissional de Duarte na área da contabilidade / certificação de contas.
De tão próxima que era já a sua relação com a Gerência, Duarte há muito que passou a ser visto como uma extensão da própria Equipa de Gestão, a qual, com dedicação exímia, vinha assessorando, acompanhando em detalhe, e a cada momento, todas as suas operações de natureza contabilística do Grupo.
Tendo consciência de que a obtenção do “mais que desejado” deferimento do requerimento apresentado tardaria, no mínimo, uns largos meses, Duarte ficou a aguardar serenamente por um desfecho favorável.
O tempo foi passando, tendo Duarte permanecido ao serviço e atuando sob o poder de autoridade e direção do Grupo “ORIGIN”, continuando adstrito ao cumprimento das obrigações laborais que sobre o mesmo impendiam, enquanto seu trabalhador por conta de outrem.
Volvidos inúmeros meses sobre a data em que Duarte decidira desencadear o processo em 2019, o requerimento favorável foi finalmente emitido, em 2020, tendo o mesmo sido notificado de que corria prazo para confirmar se aceitava o montante provável de pensão que lhe iria ser atribuído e para indicar qual a data em que a sua cessação contratual produziria efeitos, tendo Duarte comunicado unilateralmente ao organismo competente o dia 31.01.2020 como data de referência.
Quando faltavam apenas 4 dias para a mencionada data – ou seja, somente em 26.01.2020, cuidou Duarte de comunicar à Gerência do Grupo que cessaria a título definitivo em 31.01.2020 o seu vínculo contratual permanente, em vigor há cerca de 35 anos, por motivo de reforma antecipada.
E portanto, sem que absolutamente nada o fizesse prever, a Gerência do Grupo viu-se assim confrontada, no imediato, com esta notícia, a qual provocou incontáveis impactos negativos e efeitos colaterais, senão vejamos:
Se por um lado é verdade que nem a lei nem a contratação coletiva aplicável impunham a Duarte o cumprimento de um pré-aviso específico na comunicação formal para tal efeito (já que a reforma antecipada configura uma forma de caducidade automática do vínculo laboral que opera de imediato), não é menos verdade que olhar para este “copo meio cheio”, na perspetiva do trabalhador, ignorando todo um conjunto de deveres éticos e deontológicos a que o mesmo, por força da sua profissão, estava (e está) adstrito, é inexplicavelmente, tomar (erradamente) “apenas uma parte, pelo todo”.
Sendo, pois, de admitir que a atuação de Duarte pode, até, ter sido conforme à lei estritamente quanto à forma, subsistem-nos sérias dúvidas que no plano regulatório, dos demais deveres profissionais, o mesmo tenha atuado com o zelo, a diligência, a urbanidade, a probidade e a lealdade que lhe eram exigíveis, aos quais Duarte permanece, inexoravelmente, vinculado.
Parece-nos, pois, que Duarte não podia, como sucedeu, ignorar olimpicamente que o exercício da sua profissão é igualmente regulado pelo Estatuto do Contabilista Certificado e que como Membro da Ordem dos Contabilistas, impunha-se-lhe conduta bem diversa.
Este Estatuto exige que o contabilista certificado mantenha perante a entidade (ou entidades) com as quais se obrigou à prestação de serviços /atividade como TOC deveres de colaboração e de cooperação ativos, assim salvaguardando o interesse daquelas e cumprindo todos os procedimentos a que se encontra estritamente vinculado, devendo neste contexto fazer tudo o que esteja ao seu alcance para esclarecer, cooperar e colaborar no sentido de proteger o interesse atendível de tais entidades (ex: colaborar no sentido de permitir que seja garantida, em tempo, a aprovação de contas do ano transato, atento o facto de todas as operações de natureza contabilística ocorridas no exercício de 2019 terem sido pelo mesmo acompanhadas em detalhe, no decurso desse ano)
E nem se diga, como sucedeu com o trabalhador que por ser reformado antecipadamente, passou a partir de 01.02.2020 a estar totalmente impedido de trabalhar na mesma empresa ou grupo empresarial, por um período de três anos a contar da data de acesso à pensão antecipada e que, como tal, cessaria em 31.01.2020 todo e qualquer tipo de colaboração com o Grupo ORIGIN, a todos os títulos.
Nesta sede, fazemos notar que muito embora sendo verdade que o exercício de atividades geradoras de rendimento no referido período subsequente de 3 anos por reformado por antecipação no plano da flexibilização mencionado está efetivamente condicionado no plano laboral, no plano do estrito cumprimento dos seus deveres deontológicos e reguladores da sua profissão, Duarte deveria, como pugna o seu Estatuto, contribuir para o prestígio da profissão, abstendo-se de qualquer atuação contrária à dignidade da mesma e de qualquer procedimento que ponha em causa tais entidades, devendo prestar informações e esclarecimentos, nos termos previstos no seu Estatuto / Código Deontológico, e tudo isto, sem prejuízo de eventual apuramento de responsabilidade disciplinar, civil ou criminal (quando aplicável), sempre que se verifique a prática de condutas que façam perigar este quadro de valores, ética e responsabilidade, as quais deverão ser sempre objeto do correspondente tratamento, em sede própria.
Face ao exposto, alertamos para o facto de a ocorrência deste tipo de “incidentes” dever contribuir também para passarmos a dar prioridade a aspetos internos e organizacionais estratégicos que deverão ter papel central na agenda das lideranças, designadamente, (i) a construção de Planos de Sucessão e a (ii) implementação de canais eficientes de Comunicação Interna, que acomodem e previnam situações de concentração de know-how num único profissional, em detrimento de sistemas de gestão mais participada e colaborativa, em que o conhecimento é partilhado de A a Z por diversos membros da Equipa, assim obviando a “monopólios de conhecimento” que façam perigar, de forma injustificada, a continuidade e progressão no exercício das atividades económicas core.
Fica, assim, lançado o repto às Organizações – para que implementem, com urgência, mecanismos de partilha ativa e de cooperação interna, que sejam aptos a minimizar os impactos de condutas da natureza da assinalada, que se reveste de uma aparente legalidade, mas que, a final, encerra inúmeras desconformidades e incumprimentos de natureza estatutária, assim se confirmando que Ética e Legalidade devem, pois, ser adotadas em regime de complementaridade e não, de modo alternativo!
Assim o esperamos.