Autora: Joana Santos Silva, Diretora de Inovação e Professora de Estratégia do ISEG Executive Education
“Scream, so that one day a hundred years from now,
Another sister will not have to dry her tears,
Wondering where in history she lost her voice.”
– Jasmin Kur
Quem me conhece sabe que eu raramente falo deste tema. Não é que eu tenha alguma perceção romântica de viver numa sociedade que trata as mulheres de forma igual. Pelo contrário, ao longo da minha vida, fui confrontada por situações de discriminação declarada. Já me perguntaram quando/se queria ser mãe em entrevistas de emprego, já comentaram o meu físico em sala de aula, já ignoraram as minhas ideias (milhares de vezes) que depois são repetidas por um qualquer homem que aparentemente tem mais gravitas e saber estar do que eu…
Eu sei que o mundo não é equitativo, mas tinha uma premissa base: não se muda o mundo a falar, mas a fazer. As mulheres trabalham mais e são obrigadas a demonstrar competências superiores a qualquer par masculino. E assim se fazia o caminho, com trabalho, e sem conversas.
Tenho uma postura cética quanto a programas de “mulheres na liderança” e por quotas. Por mais que estas possam “abrir” portas imediatas, seremos sempre avaliadas pela quota e não pelo mérito. Diz-me o bom senso, que o mundo julgará que temos a posição por obrigação política e não por capacidade intrínseca e isso não é uma verdadeira vitória. Mais vale demorar mais tempo do que acelerar com gestos cosméticos. Ou por outras palavras, o caminho faz-se caminhando…
Ou achava eu…
A minha ingenuidade levava-me a crer que, em 2022, o caminho só podia ser em frente. Ou seja, no sentido de ter mais respeito e mais reconhecimento pelas capacidades extraordinárias das mulheres.
Só que não…
Diz-me o bom senso, que o mundo julgará que temos a posição [de liderança] por obrigação política e não por capacidade intrínseca e isso não é uma verdadeira vitória
O que aconteceu nos Estados Unidos, com a reversão da lei Roe vs. Wade retira o direito constitucional ao aborto. Esta lei, que remonta a 1973, defende o direito de escolha por parte da mulher. A constituição também defendia o direito à privacidade, sendo que a mesma lei pretendia defender a saúde da mulher. Mas mais do que tudo, para mim, e inspirada numa citação de Ruth Ginsburg, também é um tema de dignidade e decisão do próprio. A consequência de ser mãe tem um impacto que ultrapassa apenas a esfera da saúde. Tem impacto a nível financeiro, de educação, de cariz social e de progressão de carreira.
Agora, caberá a cada estado decidir a lei a aplicar às cidadãs. Infelizmente, a decisão estará essencialmente nas mãos de um conjunto de homens, que não enfrentam e não são diretamente afetados pelo facto de poderem estar “grávidos” ou serem mães. Tenho para mim, que a discriminação resulta sempre de assimetria. Quando não posso ser afetado diretamente pela minha decisão, é fácil decidir, fechando portas ao invés de abrir oportunidades.
Dito isto, não se enganem.
Eu sou mãe. Adoro ser mãe. Foi e continua a ser o melhor projeto da minha vida. Mas foi uma decisão minha. Eu queria ser mãe e aconteceu numa altura que eu selecionei. Este direito de opção, de decisão e de planeamento foi essencial para poder ser a mãe que sou, com o projeto de vida que tenho e com a capacidade de assegurar aquilo que ambiciono para o meu filho. Eu fui mãe com dignidade. Fui uma sortuda! Não é assim para todas…
E desde já, este não é um desafio americano. Para enquadrar, o aborto voluntário em Portugal foi legalizado apenas em 2007. Durante alguns anos da minha carreira, fui farmacêutica comunitária. Quando se trabalha na comunidade “sabemos” coisas. Lembro-me de uma “clínica” clandestina em plena cidade de Lisboa que vendia este serviço a mulheres desesperadas. A palavra vender não é erro, nem hipérbole. Não tendo conhecido o espaço diretamente, sei dizer que as condições não eram dignas, a segurança era inexistente e o sofrimento (físico e psicológico) seria certamente profundo. Até 2007, esta era a realidade do nosso país.
Portugal tem uma história de mulheres guerreiras e incansáveis na sua procura de igualdade, mas a nossa sociedade foi (e ainda é) muito pouco equitativa. Para destacar algumas heroínas nossas: a Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira (e única) mulher a votar em Portugal em 1911 e a Adelaide Cabete foi pioneira na reivindicação dos direitos das mulheres, exigindo um período de descanso de um mês pós-parto.
Contudo, são exceções. A mulher portuguesa no Estado Novo era tratada com ser inferior. O Código Civil estabeleceu o Poder Marital e a qualidade do marido e pai de Chefe de Família. As mães, mantinham uma dependência em relação ao pai. Citando: “é o CHEFE DA FAMÍLIA, competindo-lhe, nesta qualidade, representá-la e decidirem todos os atos de vida conjugal.” A título de exemplo, a minha mãe precisava de autorização do pai para poder frequentar a Universidade. Felizmente, ele estava de acordo. Caso contrário, ela não poderia frequentar o ensino… Para sair do país, abrir uma conta bancária, trabalhar no comércio ou ter acesso a medicamentos anticoncecionais era necessária uma autorização do “chefe de família”.
Só em 1997, com a quarta revisão da Constituição é que Estado Português tornou a promoção de igualdade entre homens e mulheres em um dos deveres fundamentais do Estado. 1997!!
Portugal escreve uma história em que as mulheres são alvo de discriminação, desigualdade e violência. Se acham que esta história pertence ao passado, basta recordar que temos um juiz que decidiu retirar a pulseira eletrónica a um homem que rebentou um tímpano à mulher ao soco, entre outros casos igualmente questionáveis.
Um professor de infeciologia comentou-me: “a nossa sociedade é muito violenta para as mulheres”. Esta citação foi em contexto de discussão sobre a epidemia do VIH/SIDA em Portugal e as profissionais do sexo, muitas delas, vítimas dos seus maridos/parceiros.
Aliado, a isto, existem menos oportunidades profissionais para mulheres, apesar das universidades portuguesas formarem mais mulheres do que homens. O estudo Diversidade, Equidade e Inclusão da Merck Portugal afirma que “é expectável que apenas em 2052 homens e mulheres recebam o mesmo salário médio mensal para funções homólogas.” 2052!!! Eu (e muitas leitoras) já estarei reformada…
O acesso ao aborto voluntário em segurança não é apenas um direito que diz respeito à reprodução. É um sinal de respeito que temos pelas mulheres da nossa sociedade. Demonstra se temos como valores, o tratamento em igualdade e de dignidade para as cidadãs, ou se estas serão relegadas a uma posição menorizada.
É expectável que apenas em 2052 homens e mulheres recebam o mesmo salário médio mensal para funções homólogas (Estudo Diversidade, Equidade e Inclusão Merck Portugal)
Como disse no início, eu tenho paciência e acredito em provas dadas. Mas tenham paciência, não tenho vontade de esperar pelo nascimento das minhas bisnetas para ver algum sinal de igualdade na nossa sociedade.
Que usemos este incidente americano para refletir sobre o estado do nosso país.
Lembrem-se: somos todos filhos de uma mulher, netos de uma mulher, provavelmente irmãos, maridos, primos, sobrinhos de uma mulher. Elas não merecem um tratamento igual e digno?
Hoje, digo em voz alta, sou feminista. Porque é isso que esta palavra quer dizer: igualdade, dignidade e oportunidade para todos. Para uma sociedade justa, equitativa e, já agora, competitiva, porque as mulheres são extraordinárias!
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